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Pe. Alexandre Palma
Por uma teologia da infância
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A observação terá parecido estranha. Talvez mesmo descabida. Mas não era. Helen Milroy, pedopsiquiatra, integrava a comissão nomeada pelo governo da Austrália para investigar as responsabilidades institucionais nos casos de abusos sexuais exercidos sobre crianças. Numa audição aos cinco arcebispos australianos (a 24/2/2017), Milroy perguntou-se se a Igreja Católica teria uma adequada teologia da infância. Talvez o seu olhar mais distanciado e descomprometido com a vida eclesial lhe tenha permitido ver o óbvio. O combate às situações de abuso e aos contextos que os tornam possíveis trava-se no campo jurídico e ético. Mas não basta. É preciso ir mais longe e lançar mais fundo as raízes de uma cultura que não apenas defenda as crianças, mas que as reconheça pelo que são. Dito de outro modo, esse combate não se faz sem uma teologia da infância.

Parece ainda subsistir – por certo já não na teoria, mas talvez ainda na prática – a ideia de que a infância é apenas um estado de vida transitório e, portanto, não merecedor de um autêntico reconhecimento social e eclesial. Durante demasiado tempo a criança foi olhada não por aquilo que ela é em si, mas pelo adulto que virá a ser. Talvez ainda não tenhamos abandonado, tanto quanto deveríamos, esta visão da identidade infantil como um défice. Ser criança é, ao invés, como qualquer outra idade humana, uma plenitude. Precisamos de aprofundar esta certeza, para afastarmos de vez todas as formas de instrumentalização das crianças.

A este respeito, o Evangelho dá-nos muito que pensar. Se o levássemos a sério, o nosso projecto de vida não seria tornarmo-nos adultos. O que julgaríamos transitório não seria a infância. Bem pelo contrário, o nosso projecto de vida seria «tornar-se criança» (cf. Mt 18, 3) e o que julgaríamos transitório seria a idade adulta, porque os cidadãos do Reino definitivo de Jesus são «como crianças» (cf. Mt 19, 14). Continua a ser uma profecia por cumprir, esta indicação de Jesus de que são as crianças o paradigma dos seus discípulos.

Todavia, não é exacto que não haja, no contexto eclesial, uma teologia da infância. Podemos desconhecê-la, podemos não a traduzir na vida, pode até estar subdesenvolvida, mas ela existe. Existe um olhar teológico sobre a infância, desde logo, no património bíblico, onde as crianças são profetas argutos, discípulos generosos, seres com uma particular sensibilidade para a presença de Deus. Existe, para além disso, na reflexão teológica acerca da condição humana. O jesuíta alemão Karl Rahner, por exemplo, dedicou um ensaio precisamente a esta questão (Pensamentos para uma teologia da infância, 1963). Ele admite uma «infância original» em nós, que atravessa todas as idades da vida. É um estado «em que estamos abertos ao inesperado, disponíveis para nos comprometermos com o incalculável; um estado que nos confere a força para sermos ainda capazes de brincar, para reconhecer que os poderes que presidem sobre a nossa existência são ainda maiores que os nossos desígnios e para nos submetermos a eles como o nosso bem mais profundo». O mesmo é dizer que há na infância formas de vida desejavelmente definitivas; que há nas crianças mestres autênticos na difícil arte de viver e de viver segundo Deus.