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Pe. Alexandre Palma
Estar no mundo
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Estar sem ser. É assim que o Evangelho situa a nossa relação com o mundo: «não sois do mundo» (Jo 15, 19); «eles estão no mundo» (Jo 17, 11). Encontra-se assim, neste delicado jogo de verbos, um equilíbrio difícil para o sentido da presença histórica e social dos cristãos. Por um lado, o Evangelho relativiza a sua presença e pertença ao mundo. A Escritura é uma proposta de transcendência, recusando-se portanto a absolutizar o mundo. Acresce que o realismo bíblico também não o idealiza. Reconhece no mundo, pelo contrário, o desvio nele semeado pelo pecado. Por isso, com frequência, se vislumbra um combate entre Jesus e o mundo, continuado no contraste entre os cristãos e o mundo. No que a Jesus diz respeito, talvez em nenhum outro lugar seja isso tão claro quanto no prólogo de S. João: «[O Verbo] estava no mundo […]; mas o mundo não o conheceu» (Jo 1, 10). E aos seus discípulos recomenda-se que se guardem livres da «corrupção do mundo» (Tg 1, 27), pois a «amizade com o mundo é inimizade com Deus» (Tg 4, 4).

Por outro lado, e a par desta visão carregada sobre o mundo, este é ainda o grande palco da epifania do amor de Deus. A Bíblia não o ignora nem deixa de o proclamar. O mundo é, pois, também um lugar de Deus e tudo nele deve ser preenchido com a sua presença. Antes do mais porque, sendo obra do Criador, há no mundo uma bondade original que nenhum pecado pode completamente destruir. Depois, porque foi ao mundo que o Pai quis dar o seu Filho. Por isso, os discípulos de Jesus são enviados a levar o eco da sua Boa Nova a «todo o mundo» (Mc 16, 15), o qual, na visão de Paulo, anseia precisamente por esta «revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19), até ao dia em que Deus seja, em definitivo, «tudo em todos» (1Cor 15, 28). Estar sem ser. Eis, portanto, o que descreve a condição peregrina dos discípulos de Jesus. Com os pés neste mundo, caminhando para além dele.

Esta «índole secular» da identidade cristã é, normalmente, atribuída aos fiéis leigos. E bem. Com efeito, são estes que, como recorda o Concílio Vaticano II, pelo seu empenho e compromisso com as coisas do mundo, impregnam e aperfeiçoam «a ordem temporal com o espírito do Evangelho» (AA, 2). Mas sendo-lhes «própria e peculiar» (LG, 31), como repetidamente afirmam os documentos da Igreja, a «índole secular» não é um exclusivo laical. E isto, a meu ver, também precisa de ser recordado, como o faz, por exemplo, a exortação sobre os leigos Christifideles laici (15): «todos os membros da Igreja participam na sua dimensão secular, mas de maneiras diferentes». Trata-se, apenas, de reconhecer o óbvio. Há uma dimensão secular na identidade de todo o baptizado, consagrados e ministros ordenados incluídos. O que não há é apenas uma maneira cristã de a viver. Também os padres, religiosos e consagrados estão no mundo. Não vivem encapsulados numa qualquer realidade ultra- mundana. É que qualquer forma de consagração – mesmo nas expressões mais radicais de fuga mundi – é, ainda, uma forma estar no mundo. Precisamos de o reconhecer e assumir. É certo que ainda buscamos as melhores formas propriamente laicais de estar no mundo, resistindo a pertencer-lhe. Mais atrasados estaremos em pensar o que é, pode e deve ser a presença no mundo daqueles que, pela ordenação e consagração, simbolizam o não sermos do mundo, mas que o fazem, precisamente, estando nele. Disto depende um pouco o podermos ser todos, em Igreja, «sal da terra» e «luz do mundo» (Mt 5, 13.14).