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Pedro Vaz Patto
Alicerçados e abertos
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Era grande a expetativa sobre o que diria o Papa Francisco durante a sua recente viagem à Hungria a respeito da política do governo desse país, que tem sido o governo europeu que mais firmemente se tem oposto ao acolhimento de refugiados e migrantes. Invoca esse governo para justificar tal oposição, sobretudo, a necessidade de preservação da cultura cristã da Hungria e da Europa, sendo tais refugiados e migrantes, na sua grande maioria, de religião muçulmana.

Particularmente significativas foram, a tal respeito, as palavras do Papa no final da missa de encerramento do Congresso Eucarístico Internacional que decorreu em Budapeste:

«(…) Isto mesmo vos desejo: que a cruz seja a vossa ponte entre o passado e o futuro. O sentimento religioso é a seiva vital desta nação, tão afeiçoada às suas raízes. Mas a cruz plantada no solo, além de nos convidar a que nos enraizemos bem, ergue e estende os seus braços a todos: exorta a manter firmes as raízes, mas sem entrincheiramentos; a beber nas fontes, abrindo-nos aos sedentos do nosso tempo. O meu desejo é que sejais assim: alicerçados e abertos, enraizados e respeitadores

Francisco de modo algum desvalorizou, pois, as raízes cristãs da Hungria (e da Europa). Por isso, fala da importância de ser “alicerçado” e “enraizado”. Aludiu em várias ocasiões aos sacrifícios que, ao longo da história, sofreu o povo húngaro para preservar tais raízes. Mas elas não podem ser uma simples relíquia do passado, como uma peça de museu. E disse, noutra ocasião, que a cruz (sinal que, mais do que qualquer outro, tem identificado os cristãos) não pode ser reduzida a um símbolo político.

Na verdade, a cruz não pode ser reduzida a um simples sinal identitário, um sinal que identifica um grupo ou uma cultura como qualquer outro sinal identifica um clube, outro grupo ou outra cultura. Há que ser fiel ao que esse sinal verdadeira e substancialmente representa. A cruz é um sinal de um Deus que se identifica com quem mais sofre (como são muitos dos refugiados e migrantes que hoje acorrem à Europa), com os vencidos e não com os humanamente vencedores. É um sinal da universalidade do amor de um Deus que ofereceu a sua vida pela salvação de toda a humanidade, não de um grupo seleto. É, pois, um sinal da universalidade do amor cristão, que não faz aceção de pessoas. Ser fiel às raízes cristãs da Europa é, pois, adotar comportamentos e políticas conformes ao amor universal a que apela o Evangelho.

Por outro lado, como já noutras ocasiões afirmou o Papa Francisco, uma cultura enriquece-se quando se abre ao diálogo com outras (podemos comprová-lo com a nossa história de Portugal), não quando se fecha sobre si e se entrincheira. Afirmou na encíclica Fratelli tutti: «Uma sã abertura não ameaça a identidade, porque ao enriquecer-se com elementos doutros lugares, uma cultura viva não faz uma cópia nem mera repetição, mas integra as novidades, segundo modalidades próprias» (n. 148). «Toda a cultura saudável é por natureza aberta e acolhedora, não estática» (n. 146).

A respeito da cultura cristã da Europa, afirmou Francisco no discurso que deixou escrito quando visitou a Universidade Roma Tre, em 17 de fevereiro de 2017: «Considerando que a primeira ameaça à cultura cristã da Europa vem precisamente do seio da Europa, o fechamento em si mesmos ou na própria cultura nunca é a solução para voltar a dar esperança e realizar uma renovação social e cultural. Uma cultura consolida-se através da abertura e do confronto com as outras culturas, desde que haja uma consciência clara e madura dos próprios princípios e valores».

São meritórias as políticas do governo húngaro que superam as de outros países europeus no que se refere aos apoios aos cristãos perseguidos, ou aos apoios à família e à natalidade. Mas não é conforme às raízes cristãs da Europa fechar a porta a refugiados e migrantes que nesta possam ser convenientemente acolhidos.