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Pedro Vaz Patto
O centro mais secreto

A comissão que investigou a prática de abusos sexuais de crianças e adolescentes no âmbito da Igreja francesa nas últimas décadas recomendou que fosse limitado o segredo da confissão como meio de proteger potenciais vítimas. Logo o Governo francês se apressou a manifestar a sua intenção de assim proceder por via legislativa, afirmando um seu representante que tal segredo não pode estar «acima das leis da República». Foram já aprovadas leis nesse sentido na Austrália e no Chile.

O presidente da Conferência Episcopal francesa, Eric de Moulins-Beaufort, e o cardeal Mauro Piacenza, representante do Vaticano, reafirmaram a doutrina católica e as normas de direito canónico a tal respeito, que consagram a inviolabilidade absoluta desse sigilo sacramental. Sempre assim foi ao longo da história da Igreja, em que até há registo de mártires por se recusarem a violar tal sigilo. Trata-se de uma regra que não pode ser alterada no futuro, por se tratar de «direito divino revelado», como também reafirmou uma nota da Penitenciaria Apostólica (da Santa Sé) de 2019. Mesmo que uma lei civil imponha a violação desse segredo, o sacerdote que obedeça a essa lei incorre na pena de excomunhão (cânone 1388), a mais grave das penas previstas no Código de Direito Canónico.

Mas também na perspetiva do direito dos Estados se justifica o respeito pelo segredo da confissão. Não é verdade que «as leis da Republica» se sobreponham a tudo, elas estão vinculadas ao direito natural, em que assentam direitos humanos fundamentais como os da liberdade de consciência e de religião.

O processo penal como instrumento de combate à criminalidade também reconhece limites, porque «os fins não justificam os meios». Por muito eficaz que pudesse ser, por exemplo, a tortura como instrumento de combate à criminalidade, nunca ela seria admissível.

Violar o segredo de confissão é invadir o domínio mais íntimo da pessoa, o da sua consciência e da sua relação com Deus. Na definição da constituição do Concílio Vaticano II Gaudium et Spes (n.º 16), «a consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus». Na confissão, o sacerdote intervém, tão só, como ministro de Deus. 

É este respeito pela intimidade da pessoa e a sua consciência que justifica que no Código de Processo Penal português (artigo 135.º, n.º 5) o sigilo religioso nunca possa ser quebrado, ao contrário do que sucede, a título excecional e quando estejam em causa «interesses preponderantes», com outros segredos profissionais. 

Depois, há que salientar também que a possibilidade de violação do segredo da confissão seria contraproducente na perspetiva da proteção das vítimas. Sem a garantia do respeito absoluto por tal segredo, certamente os autores de crimes não recorreriam à confissão. E através da confissão poderão, e deverão ser incentivados, até como condição da absolvição, a alguma forma de reparação de danos causados e a dar passos efetivos no sentido da não repetição do pecado cometido.

Também para a vítima, o respeito do segredo de confissão pode levá-la a pela primeira vez falar com alguém sobre o assunto e, como salientou o presidente dos bispos franceses, tal representar «o primeiro passo no sentido da libertação da palavra». A partir desse passo, pode ser incentivada pelo sacerdote a prosseguir nesse sentido, denunciando a prática do crime.

Outros são, pois, os caminhos do combate à prática de crimes de abusos sexuais de crianças e adolescentes.