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P. Gonçalo Portocarrero de Almada
A voz e a Palavra

João Baptista é, no tempo do Advento, uma personagem recorrente. Graças a São Lucas, sabemos que Maria e Isabel, as mães de Jesus e de João, eram parentes próximas, não só pelo sangue, mas também pela amizade: quando João estava no sexto mês da sua gestação, Maria foi para casa de Isabel, para lhe dar assistência na etapa final da gravidez daquela que era de idade avançada e se supunha estéril (Lc 1, 36).

Era também muito estreita a relação entre os dois primos: para além do parentesco que os unia, tinham praticamente a mesma idade, apenas seis meses de diferença, e é provável que fossem parecidos, porque Jesus, por razões óbvias, só podia ter herdado os traços fisionómicos de Maria. A relação entre o Baptista e o Mestre era tal que Herodes os chega a confundir: depois de ter mandado degolar João, ao ouvir falar dos milagres de Jesus, supõe que é o filho de Zacarias e de Isabel que ressuscitou! (Mc 6, 16).

João foi precursor de Jesus em muitos aspectos. De facto, foi João que introduziu o baptismo, que depois Cristo elevará à condição de sacramento da Nova Lei. O Baptista se encarregará de formar alguns dos que, depois, serão apóstolos de Jesus, como André e João. Também pela sua morte sangrenta, João precedeu o Mestre, que igualmente deu a vida pela verdade da sua condição divina, como filho unigénito de Deus, pela qual foi condenado à morte pelo Sinédrio; e da sua realeza, que foi o título da sua condenação civil à pena capital, por Pôncio Pilatos.

Talvez ninguém, melhor do que Santo Agostinho, tenha explicado a relação entre João Baptista e Jesus de Nazaré, a partir da declaração joanina de que o Filho de Maria é o Verbo, ou seja, a palavra (Jo 1, 1-18), de que o precursor disse ser apenas a voz (Jo 1, 19-23): “João era a voz, mas o Senhor era a Palavra desde o princípio. João era uma voz passageira, Cristo era desde o princípio a Palavra eterna”.

Depois desta constatação, que se poderia dizer factual, Agostinho relaciona o verbo pronunciado e a voz que o enuncia: “Sem a palavra, que vem a ser a voz? Vazia de qualquer sentido inteligível, não é mais do que um simples ruído. A voz sem a palavra entra nos ouvidos, mas não chega ao coração. Entretanto, vejamos o que sucede na comunicação do nosso pensamento. Se penso no que vou dizer, já está a palavra presente em meu coração; mas se pretendo falar contigo, procuro o modo de fazer chegar ao teu coração o que já está no meu”.

Uma voz sem palavra pode ser um grito, mas não é inteligível; como uma palavra sem voz é talvez um conceito, mas incomunicado: “Então, para conseguir que chegue a ti e cale em teu coração a palavra que já está no meu, recorro à voz e, mediante ela, falo contigo. O som da voz leva ao teu espírito o sentido da minha palavra; e quando o som da voz te fez chegar o sentido da minha palavra, esse mesmo som desaparece; mas a palavra, que o som te transmitiu, está já em ti sem deixar de permanecer em mim”.

Assim é a fé: Palavra que, ao ser transmitida, não deixa de permanecer naquele que a testemunha e nele se reafirma, porque a palavra, ao ser comunicada, fortalece a fé de quem a profere. Mas, porque não é fácil destrinçar a voz da palavra, muitos pensaram que o Baptista era o Messias. “Precisamente porque é difícil não confundir a palavra com a voz, tomaram João pelo Messias. A voz foi confundida com a palavra. Mas a voz reconheceu-se a si mesma como tal, para não lesar a Palavra. [João Baptista] disse: Não sou Cristo, nem Elias, nem o Profeta. Quando lhe perguntaram: Então, quem és? Respondeu: Eu sou a voz do que clama no deserto, […] como se dissesse: Sou a voz que se faz ouvir apenas para introduzir a Palavra no vosso coração.

É pela fé que, ao ouvirmos a voz da Igreja, nela reconhecemos a Palavra que é Cristo. Quem não recebeu esse dom, ouve a voz, mas não acolhe a Palavra que, pela voz, se revela. Os que têm, na Igreja, a missão de ser voz desta Palavra, são apenas instrumentos pelos quais a mensagem se transmite e comunica: a Igreja não se prega a si própria, como a voz também não se anuncia a si mesma, porque há-de ser a voz de Jesus, como João foi a voz da Palavra, que é Cristo.

João Baptista é um exemplo para todos os pregadores: “Se ele tivesse “dito: ‘eu sou o Messias’, facilmente teriam acreditado na sua palavra, pois que já o tinham como tal antes de o haver dito. Mas não disse; antes reconheceu o que era, disse o que não era, foi humilde. Compreendeu donde lhe vinha a salvação; compreendeu que não era mais que uma tocha ardente e luminosa, e receou que o vento da soberba a pudesse apagar” (Sermão 293, 3; PL 1328-1329).

Que na noite santa de Natal se calem todas as vozes que não anunciam a Palavra que é Cristo, para que apenas se oiça o cântico da milícia celeste, louvando o divino Infante: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade!’” (Lc 1, 13-14).