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Pedro Vaz Patto
Antes e depois de Cristo*

Grande clamor e indignação suscitou a proposta (entretanto retirada) da Comissão Europeia de aconselhar/proibir aos seus funcionários a menção do Natal nos tradicionais votos próprios da quadra respetiva, para desse modo respeitar quem, nas agora multiculturais sociedades europeias, não se reconhece no cristianismo. Uma proposta que nem chegou a ver a luz do dia, mas que foi suficiente para criar em muitos ainda mais desconfiança sobre o rumo que está a tomar o projeto de unidade europeia.

Uma observação que deve ser suscitada por tal proposta tem a ver com as razões pelas quais se justifica celebrar o Natal, mesmo para quem não creia em Jesus Cristo como Deus feito homem e no seu nascimento como manifestação do supremo amor de Deus pela humanidade. Esse nascimento e as transformações provocadas pelo cristianismo marcaram a história da humanidade em muitos âmbitos e não é por acaso que uma boa parte desta passou a dividir o tempo em duas eras: antes e depois de Cristo (no entanto, também há quem pretenda designar como “era comum” o período até agora designado como “depois de Cristo”).

O historiador Jaroslav Pelikan salientou que a alteração do calendário é um indício de que «ninguém pode escapar ao facto de que Jesus de Nazaré alterou para sempre a história do mundo». Isso pode ser verificado por um observador externo, independentemente da sua adesão à fé cristã

Assim, num célebre artigo escrito em 1942 (com o título Perché non possiamo non dirci cristiani), o filósofo italiano laico Benedetto Croce considerava o advento do cristianismo «a maior revolução da história da humanidade», diante da qual todas as outras revoluções são particulares e limitadas, com que não têm paralelo a revolução grega do pensamento e a revolução romana do direito, e da qual dependem as revoluções modernas. É assim porque se trata de uma revolução que opera «no centro da alma, na consciência moral». E – afirma ainda este pensador laico – é uma revolução «tão abrangente e profunda, tão fecunda de consequências, tão inesperada e irresistível no seu atuar, que não é de admirar que possa parecer um milagre, uma revelação do Alto, uma intervenção direta de Deus nas coisas humanas». Essa revolução centra-se no amor para com todas as pessoas, sem distinção de classes, livres e escravos, e no amor para com Deus, que é o Deus de amor e está próximo de todas as pessoas. E acrescenta ainda Benedetto Croce: «As revoluções e descobertas que se seguiram nos tempos modernos, na medida em que envolveram todo o ser humano, a sua própria alma, não podem ser pensadas sem a revolução cristã, numa relação de dependência com ela, à qual cabe o primado, porque o impulso originário foi e continua a ser seu».

Muitos fenómenos hoje impensáveis, ou quase unanimemente condenadas, não o eram antes dessa revolução. Nem sempre disso nos apercebemos, tão habituados que estamos a determinadas formas de sentir e reagir. É verdade que essas transformações não se deram de um dia para o outro e que os cristãos muitas vezes não foram coerentes (às vezes inconscientemente, outras não) com as implicações da mensagem que receberam e pretendiam transmitir. E também é verdade que essas implicações estão hoje ainda longe de estar esgotadas, como constantemente podemos verificar. Mas também por isso deve continuar a ser celebrado o nascimento de Jesus Cristo, porque esse nascimento não só marcou a história da humanidade, como deve continuar a marcá-la.

De entre os fenómenos hoje impensáveis ou quase unanimemente condenados, mas frequentes e geralmente aceites em várias sociedades pré-cristãs, podem destacar-se: o infanticídio e o abandono de crianças à nascença, especialmente quando atingidas por alguma deficiência; o abandono de idosos e doentes (os hospitais e a assistência aos doentes, como hoje as conhecemos eram desconhecidos na Roma antiga); a morte de pessoas humanas como motivo de divertimento (nas lutas de gladiadores); a poligamia e várias formas de “coisificação” da mulher; os sacrifícios humanos oferecidos aos deuses; a deificação do titular supremo do poder político (por isso, não sujeito a qualquer limitação);  a escravatura (a que em muitos casos estava sujeita a maioria da população, como na Grécia, “pátria da democracia”); o desprezo para com os pobres; ou o desprezo para com o trabalho manual. Alguns episódios emblemáticos podem ser, a este respeito evocados: a forma como os cristãos no Império Romano se aproximavam e cuidavam das vítimas da peste (o que suscitava admiração por contrastar abertamente com a atitude de abandono dessas vítimas, então corrente); ou as palavras de São Paulo a Filémon, exortando-o a tratar o seu escravo como um irmão (sem diretamente contestar juridicamente a escravatura, colocava assim a base que, no plano dos princípios éticos, haveria de implicar a sua abolição). Afirma o escritor luterano Alvin Schimdt, no livro How Christianity Changed the World, (Zondervan, 2004) que quando hoje alguém, independentemente da sua fé, de forma espontânea, não fica indiferente e revela compaixão para com as vítimas de tragédias humanas (catástrofes naturais, massacres, guerras ou fome), a essa reação não é indiferente a influência de dois mil anos de cristianismo. 

Não há, pois, dúvida de que o nascimento de Jesus Cristo marcou a história da humanidade e que esta seria bem diferente se Ele não tivesse nascido. E também que esse nascimento e a mensagem que trouxe deverá continuar a marcar essa história, pois o seu potencial transformador está longe de estar esgotado. Mas é assim também porque a verdade é que alguns dos fenómenos acima mencionados que, por influência do cristianismo, têm sido unanimemente condenados já não o são hoje tão claramente. Estou a pensar no fenómeno seguinte.

Na Roma pré-cristã eram frequentes o infanticídio e o abandono de crianças, em especial das portadoras de alguma deficiência. Neste contexto, a “revolução cristã” atuou “contra a corrente” e contribuiu decisivamente para pôr termo a essa prática. Na célebre Carta a Diogneto, que por volta do ano 120 d.C. retratava os cristãos da época, a recusa do abandono de recém-nascidos era indicada como algo que os distinguia no ambiente que os rodeava. Não posso deixar de pensar, a este respeito, por contraste e no contexto atual, no exemplo do aborto, especialmente o que vitima nascituros portadores de deficiência, como a trissomia 21. Em muitos países é o que sucede em mais de 90% das gravidezes em que esta doença é detetada e alguns têm mesmo como objetivo atingir a meta dos 100%. Esta é uma notória regressão civilizacional, decorrente da negação do legado daquela a que Benedetto Croce chamou «a maior revolução da história da humanidade».

 

* texto publicado originalmente no site ‘No Barco de Cristo’ (www.nobarcodecristo.pt)


 

foto por Paulo Berberth