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Pe. Alexandre Palma
Como habitar cristãmente este mundo?

Talvez a questão mais decisiva para o cristianismo do nosso tempo seja esta: como habitar um mundo que parece cada vez mais distante? Um misto de desconforto e perplexidade mantém esta questão aberta como uma ferida. São vários os sinais dessa distância. Lógicas que valorizam o imediato e o material. Percursos de vida concentrados no indivíduo. Gerações que se afastam da fé e da sua prática. Sociedades que, também em questões decisivas, escolhem contradizer valores inspirados na tradição cristã. Não importa apenas saber se isto é exactamente assim (nem sempre o será). Importa também reconhecer que o mundo de hoje é, com frequência, assim percebido no seio de comunidades cristãs. E isso gera nelas o mencionado desconforto de viver num mundo que lhes parece cada vez mais estrangeiro e a perplexidade de não perceber como é possível este afastamento nem como fazer-lhe face.

De certo modo, as hesitações e controvérsias que atravessam as próprias comunidades cristãs encontram aqui a sua raiz. Hesitações por nem sempre lhes ser claro o que fazer. Controvérsias por se defenderem formas diferentes, por vezes mesmo antagónicas, de responder a este tremendo desafio epocal. Temos, por um lado, o que o teólogo Miroslav Volf chama de «recuo sectário». Perante um mundo percebido como sendo cada vez mais hostil, as comunidades cristãs deveriam fazer a opção de se retirarem do palco social e cultural, para criarem o seu próprio espaço, o seu próprio (sub)mundo, onde tudo seria então idealmente cristão. Resposta distinta, mas com pontos em comum, é o «tradicionalismo». Esta perspectiva, mais do que migrar para um outro espaço, procura regressar a um outro tempo. A ideia parece ser esta: se o cristianismo retornar a formas do seu passado reencontrará a relevância de outrora e entretanto perdida. Postura diametralmente oposta é, sempre na síntese de Volf, a da «acomodação liberal». Longe de querer um cristianismo de resistência aos ares do tempo, ela pugna pela sua abertura, quando não mesmo adaptação, às transformações deste nosso mundo novo.

Parece-me que estas posturas falham qualquer coisa de essencial no cristianismo. Percebo, até certo ponto, o que leva alguém a crer nelas. Elas dão a impressão de responder a certos elementos do desafio de se ser cristão nestes tempos conturbados. Mas fazem-no não levando em devida conta outros elementos e, portanto, o todo da experiência cristã. Eis porque elas acabam por ser mais cantos de sereia do que efectivos caminhos de futuro. Como poderiam os cristãos recuar para um terreno à parte, sem com isso hipotecar que o Evangelho possa chegar a todo o mundo ou que a comunidade dos discípulos de Jesus seja composta de gente normal, e não apenas de pessoas perfeitas e puras? Como poderiam os cristãos abandonar o nosso tempo, sem com isso perderem a capacidade de viver o presente e de se voltarem futuro com a fé e a esperança próprias da Páscoa, sabendo que o Senhor não apenas nos acompanha em qualquer o tempo, mas que connosco continua a abrir caminhos novos em tempos novos? E como poderiam os cristãos acomodar-se de tal forma às culturas dominantes que se instalasse a confusão entre a justa procura do bem no mundo à redução de todo o bem a este mundo? Por essas vias é incomensuravelmente mais grave o que se perderia do que o pouco que se pudesse ganhar.

Terei, um dia, de voltar a este assunto, porque fica por dizer, pela positiva, como, então, habitar cristãmente este mundo em transformação. Mas, como dizia José Régio, num seu verso muito glosado, «Não sei para onde vou / Sei que não vou por aí» (Cântico Negro). E este saber por onde não ir não é tudo, mas é já qualquer coisa.