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Pedro Vaz Patto
Cultura de paz e guerra da Ucrânia

Difundir uma cultura de paz é, naturalmente, missão essencial das comissões Justiça e Paz. As comissões europeias programaram para este ano uma ação concertada que tinha por tema, precisamente, a construção de uma nova cultura de paz à luz da encíclica Fratelli tutti. Nessa ação incluem-se propostas no sentido do desarmamento multilateral, na linha do que também vem sendo proposto pelo Papa Francisco, que sugere a criação de um fundo mundial para combater a fome com recursos poupados com esse desarmamento.

Poucos dias antes da data em que estava programado o lançamento dessa campanha, teve início a invasão da Ucrânia. Foi imediata a reação de condenação dessa invasão por parte das comissões Justiça e Paz europeias, que também manifestaram a sua solidariedade para com o povo ucraniano. Nessa linha, contactaram responsáveis da Igreja Católica na Ucrânia. Estes, tal como representantes de outras denominações cristãs, pediram que essa solidariedade se traduzisse no envio de armas para defesa da independência da sua nação, que, diziam, é também a defesa da democracia e da liberdade em toda a Europa. Pugnaram até pelo estabelecimento de uma zona de exclusão aérea como o único modo eficaz de travar a ofensiva russa.

De entre os representantes das comissões Justiça e Paz europeias não surgiram dúvidas sobre a legitimidade da defesa armada por parte do povo ucraniano. A legitimidade do recurso à força neste tipo de situações, como último recurso, é afirmada pela doutrina da Igreja e foi reafirmada pela Fratelli tutti. Neste caso, também é evidente que os esforços de prévia negociação diplomática foram gorados, desde logo pela postura do governo russo, que negou na prática as suas afirmações iniciais de que não estava nos seus planos a invasão da Ucrânia.

Poderá, então, pensar-se que deixa de ter sentido, neste contexto tão diferente daquele que antecedeu esta guerra, difundir uma cultura de paz e fazer propostas no sentido do desarmamento. Estou certo de que não e de que as comissões Justiça e Paz, solidárias com a defesa do povo ucraniano, têm, neste contexto, algo mais a dizer, de específico, precisamente no sentido da construção dessa cultura.

Há que salientar, antes de mais, que a guerra é sempre um mal que também causa vítimas entre os agressores. Não pode ser motivo de celebração o número de soldados inimigos mortos, desde logo porque muitos destes não tinham alternativa ao serviço militar.

Há que recordar que a doutrina da Igreja considera também condição de legitimidade de uma guerra defensiva que os danos causados por essa guerra não sejam superiores aos que com ela se quer evitar (aqui se incluindo os efeitos que a cedência a uma agressão pode ter como incentivo a agressões futuras). É algo que dever ser tido em conta quando se avalia o risco de a guerra se estender a outras nações e dar origem a uma terceira guerra mundial, até com eventual uso de armas nucleares. E tal critério também deve ser tido em conta em negociações para pôr termo ao conflito: transigir nalguns aspetos, sem que tal signifique premiar o agressor, pode ser o preço a pagar para alcançar a paz e evitar danos ainda maiores.

Se a ocupação se consumar, há formas de resistência não violenta, como a recusa sistemática de colaboração com as forças ocupantes, que podem ser alternativa à resistência armada. Essas forças ocupantes poderão prender quem lhes desobedece, centenas ou milhares de pessoas, dificilmente o farão se forem milhões a desobedecer.

Mais amplamente, é de evocar a difusão de uma cultura de paz ao conceber a nova ordem internacional saída desta guerra. A este respeito, a ideia que hoje predomina é a do reforço das despesas militares, de uma nova ordem internacional assente numa ainda maior desconfiança mútua, segundo o velho adágio “se queres a paz, prepara a guerra”. Se for assim, poucas hipóteses de aceitação terão as propostas de desarmamento do Papa Francisco.

Não tem que ser assim, porém. Depois da Segunda Guerra Mundial, colhendo as lições da mesma e para evitar que um semelhante flagelo viesse a repetir-se, surgiram as Nações Unidas e a sua Carta e a União Europeia, que permitiram largos períodos de paz, como a história anterior não tinha experimentado (e que a atual guerra veio surpreendentemente quebrar). Desta guerra há que colher também novas lições, e fazer com que se progrida, e não regrida, no caminho da paz.

Uma dessas lições é, precisamente, a da necessidade de superar o perigoso equilíbrio que se baseia na dissuasão. Esta guerra mostrou de novo o perigo que representa a simples possibilidade de uso de armas nucleares, porque nunca pode em absoluto confiar-se na sensatez de quem possa tomar uma decisão dessas. Por isso, não deixa de ter sentido aspirar à eliminação total (não certamente de forma unilateral) das armas nucleares, como tem sido propugnado pelo Papa Francisco.

Uma paz assente na confiança mútua supõe um consenso universal, ou mais alargado, sobre o valor dos direitos humanos, das pessoas e dos povos. Viu-se que (ao contrário do que muitos pensavam) tal não resulta automaticamente da globalização económica e dos laços de interdependência por esta criados. Parece que tal não é possível com o regime político que hoje vigora na Rússia. Mas tal regime pode cair, como caiu, por vias pacíficas, o comunismo. As culturas não são estáticas, a Oriente e Ocidente. Apesar de tradições diferentes quanto à organização do Estado e das relações entre a Igreja e o Estado, as raízes culturais cristãs, que conduzem ao reconhecimento da dignidade da pessoa humana, são comuns à Europa e à Rússia. São João Paulo II falava da “Europa do Atlântico aos Urais”, nela incluindo, pois, a Rússia.

Será esta a via a seguir para construir uma nova ordem internacional à luz de uma cultura de paz colhendo as lições da guerra da Ucrânia.