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Guilherme d'Oliveira Martins
Recordação do «irmão universal»
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Continuamos a ler os Atos dos Apóstolos, e a acompanhar Paulo e Barnabé no seu percurso: «Naqueles dias, Paulo e Barnabé voltaram para as cidades de Listra, Icónio e Antioquia. Encorajando os discípulos, eles exortavam-nos a permanecerem firmes na fé, dizendo-lhes: “É preciso que passemos por muitos sofrimentos para entrar no Reino de Deus”. Os apóstolos designaram presbíteros para cada comunidade. Com orações e jejuns, eles confiavam-nos ao Senhor, em quem haviam acreditado. Em seguida, atravessando a Pisídia, chegaram à Panfília. Anunciaram a palavra em Perga, e depois desceram para Atalia. Dali embarcaram para Antioquia, de onde tinham saído, entregues à graça de Deus, para o trabalho que haviam realizado. Chegando ali, reuniram a comunidade. Contaram-lhe tudo o que Deus fizera por meio deles e como havia aberto a porta da fé para os pagãos. E demoraram-se bastante tempo com os discípulos» (Act, 14, 21b – 28). O caminho é exigente e cheio de dificuldades. Mas a lição fundamental é a de que os apóstolos vão ao encontro dos gentios, afirmando que o Povo de Deus não é constituído só por alguns ou por uns quantos privilegiados. Não. Todos são chamados. Por isso, o Papa S. João XXIII, quando escreveu a encíclica “Pacem in Terris”, dirigiu-a a todos, mulheres e homens de boa vontade. O diálogo entre pessoas é a chave da dignidade humana. Como afirmou o Padre Matteo Ricci (1552-1610), na China, a relação com os outros obriga-nos a considerá-los como uma natural continuação de cada um, como a outra metade de nós mesmos. O amor, o cuidado e o serviço levam-nos a entender a fé como um dom, que não se alimenta de valores abstratos, mas sim de uma relação entre pessoas concretas, feita de entrega, de troca, de experiências e de uma permanente aprendizagem. A chave das Bem-aventuranças está, pois, na relação entre as pessoas e no reconhecimento da dignidade de todos. A abertura da porta da fé, que preocupava Paulo e Barnabé, correspondia, assim, à procura do amor.
Se nos lembrarmos de Charles de Foucauld (1858-1916), o «irmão universal» que em breve será canonizado, exemplo de entrega à causa missionária no Norte de África, depois da conversão em 1886, que correspondeu a uma completa mudança de vida (como no caso de Agostinho de Hipona), descobrimos um modo especial de abertura da porta da fé, em nome da paz e de uma espiritualidade centrada no primado da dignidade da pessoa humana. Charles dizia-se portador de Cristo, compreendendo que sua missão era, antes de tudo, viver a fraternidade com os que o rodeavam, testemunhar a sua alegria no dia-a-dia. E assim emerge a figura que estudava as línguas dos outros, para melhor comunicar e para que a troca de experiências pudesse ser fiel à linguagem do coração – símbolo da Fraternidade dos Irmãozinhos de Jesus, fundada pelo Padre René Voillaume (1905-2003) e inspirada na experiência de Charles de Foucauld, na qual se integraria Jacques Maritain (1882-1973) nos últimos anos da sua vida. Importaria, no fundo, a recolha dos testemunhos e das experiências de culturas diferentes, tendo-se dedicado especialmente à reunião de textos, poemas e canções tuaregues. E no centro dessa atenção e dessa procura estava a presença do Evangelho como amor. E assim a sua missão era ser portador de Cristo e da Boa Nova, numa vida quotidiana partilhada, sobretudo, deixando espaço para que o Espírito fizesse a sua obra no coração de cada pessoa. Charles não considerava, assim, que a sua tarefa fosse mostrar o caminho, mas de permitir a cada um encontrar o amor de Jesus Cristo, não necessariamente do modo que o missionário inicialmente teria imaginado, mas na maneira que só Deus conhece, que é o caminho que é bom para cada um.
Olhando para a família de Nazaré, o irmão Charles de Foucauld, na sua transformação de vida, percebeu a «esterilidade do anseio pela riqueza e pelo poder; com o apostolado da bondade», fez-se tudo para todos, atraído pela vida de ermita, compreendendo que «não se cresce no amor de Deus evitando o serviço das relações humanas». Porque é amando os outros que se aprende a amar Deus; é curvando-se perante o próximo que se eleva a Deus. Através da proximidade fraterna e solidária aos mais pobres e abandonados, o irmão dos irmãos «compreendeu que são precisamente eles que nos evangelizam, ajudando-nos a crescer em humanidade». Mas os salteadores do deserto viram no tesouro que o irmão Charles guardava, Jesus no sacrário, uma mera riqueza material e mataram-no, repetindo o Calvário. E hoje o seu exemplo e a sua memória levam a considerar a ligação entre compaixão e justiça. Quando caminhamos para o Pentecostes, e acompanhamos o caminho de Paulo e Barnabé, é tempo de pensarmos (numa estranha conjuntura de guerra) na porta da fé, amando a Deus na riqueza das relações humanas, para além de ressentimentos e violências, para que a dignidade das bem-aventuranças não seja uma palavra vã!
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