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Pedro Vaz Patto
Há mais abusos

Em nada diminui a gravidade dos crimes de abuso sexual de menores praticados por sacerdotes ou no âmbito da Igreja o facto de este crime ser praticado, porventura até em maior escala, noutros âmbitos. Essa gravidade é acrescida porque estarmos perante uma prática radicalmente contrária ao testemunho que dessas pessoas se esperaria e uma quebra de uma relação de profunda confiança nelas depositada pelas vítimas e seus pais e mães.

Mesmo assim, acho que não devo deixar de salientar esse facto. Por um lado, porque na minha profissão de juiz tenho ocasião de lidar quase semanalmente com esse tipo de crimes, praticados nos mais variados âmbitos e por pessoas de todas as profissões e graus de instrução, praticados agora e não há décadas. Mas, sobretudo, porque se isso não for salientado, pode criar-se (e já me relataram factos reais que o demonstram) uma injusta e perniciosa suspeição generalizada sobre os sacerdotes, como se nestes se verificasse uma especial propensão para a prática desse crime, com a perigosidade que lhe está associada.

Reconheço também o louvável papel da comunicação social na denúncia da prática desses crimes no âmbito eclesial, por muitos incómodos e agruras que daí decorram. Não há que temer a verdade. Isso não significa que a comunicação social esteja imune à crítica no modo como trata esses casos (também ela é um poder de que pode abusar-se e deve ser limitado), quando, mais do que a proteção das vítimas e a prevenção de casos futuros, se servem outro tipo de objetivos e se condenam sumariamente pessoas contra um equilibrado sentido de justiça (como tem sucedido com D. Manuel Clemente, por razões que oportunamente indiquei).

Mas, sem negar esse papel de denúncia da comunicação social (o Papa Francisco também já o exaltou), parece-me legítimo pretender que o foco da sua atenção não se centre exclusivamente na prática desse crime no âmbito eclesial, porque isso pode ter o efeito de generalização a que acima me referi, e porque ficam de fora outro tipo de danos e de vítimas que também não devem ser esquecidos.

A este respeito, sinto que não posso deixar de referir um fenómeno particularmente chocante, mas notório. Neste caso não se trata só de esquecer danos e vítimas, trata-se de colaborar ativamente na prática do crime.

Os danos psíquicos decorrentes da prática da prostituição, em crianças, adolescentes e adultos, podem ser equiparados, de certo modo, aos dos abusos sexuais de menores. É sabido que uma percentagem muito significativa de mulheres começa a dedicar-se à prostituição ainda antes de atingir a maioridade e que não há mercados inteiramente separados para a prostituição de adultos e a prostituição de menores (também por isso, a legalização da prostituição não permite, antes pelo contrário, um mais eficaz combate à prostituição de menores). A prostituição de menores pode ser encarada, para este ramo de “negócio”, como um “investimento” que assegura ganhos futuros. Por outro lado, não pode estabelecer-se uma barreira rígida, coincidente com a da idade da maioridade, para distinguir situações de prostituição “maligna” e voluntária ou “benigna”. Quando em anúncios de prostituição se publicitam os serviços de “jovens de dezoito anos” como chamariz para atrair clientes, é óbvio o perigo de por esta via se ocultar a prostituição de jovens menores de dezoito anos (e será assim tão diferente ter dezassete ou dezoito?).

Respondendo a sucessivas queixas, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social pronunciou-se já sobre o fenómeno dos anúncios publicitários de prostituição em jornais: numa deliberação de 30 de novembro de 2010 (acompanhada de um estudo relativo ao ano anterior) e noutra de 20 de outubro de 2021, que remete para primeira (podem ser consultadas ambas em www.erc.pt).

Dessas deliberações e desse estudo pode facilmente deduzir-se que a publicação desses anúncios pode configurar a prática de um crime de lenocínio (a legislação portuguesa não pune a conduta da pessoa que se prostitui, encarada como vítima, mas de quem explora a atividade desta), crime definido no artigo 169.º do Código Penal como a conduta de quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomente, favoreça ou facilite o exercício da prostituição por outra pessoa.

No estudo anexo à primeira dessas deliberações são analisados vários anúncios que indiciam a intervenção de redes de proxenetismo organizado (não uma atividade “por conta própria”) e é detetado até um caso nítido de prostituição de um jovem adolescente. Destacam-se, pela quantidade de anúncios regularmente publicados, os jornais Correio da Manhã e Record, mas também se detetam anúncios noutros jornais diários impressos, embora em muito menor escala. Calcula-se nesse estudo que os proventos decorrentes dessa publicidade, no ano de 2009 (altura em que as vendas de jornais eram – é certo – muito superiores às de hoje) se tenham aproximado dos quatro milhões de euros, no caso de Correio da Manhã, e de quinhentos mil euros, no caso do Record.

Na verdade, outro cuidado e outra atenção deveria a comunicação social ter também para com outras formas de abuso sexual. Neste caso, estarão em causa adultos (adultas na maior parte dos casos), mas que não deixam de ser vítimas. E, muito provavelmente, direta ou indiretamente, também menores.

 

Pedro Vaz Patto