Artigos |
P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Abuso de menores na Igreja: ponto da situação

A Igreja deu testemunho do seu sincero compromisso com a verdade e com a justiça. É de esperar que a sociedade o reconheça e faça o mesmo.

 

1. No passado dia 13, a Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais na Igreja Católica ou, simplesmente, Comissão Independente (CI), apresentou o seu relatório final. Num país em que, por regra, a culpa morre solteira, é louvável o trabalho realizado pela CI. No entanto, pelo respeito devido às vítimas, teria sido preferível que a apresentação do relatório tivesse sido mais sóbria e, sobretudo, se tivesse evitado a minuciosa descrição de episódios escabrosos.

2. O resultado apurado em relação aos últimos 72 anos, a partir de 512 denúncias validadas, estima que o número das vítimas de abusos sexuais na Igreja católica em Portugal é de 4.815 menores (sendo uma mera estimativa, seria mais lógico dizer que as vítimas apuradas foram cerca de 5 mil). É, decerto, uma cifra superior ao que muitos desejavam, mas também inferior ao que muitos temiam. Se é verdade que um só caso é já excessivo – e nunca será demais dizê-lo – também é verdade que os números contam e, por isso, a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), com humildade e coragem, quis apurar, com a exatidão possível, a dimensão deste drama na Igreja católica do nosso país.

3. As denúncias validadas pela CI não correspondem necessariamente a crimes efectivamente praticados, porque uma denúncia, mesmo que verosímil, só resulta em condenação depois de confirmada em sede judicial. Só 25 casos foram enviados pela CI para o Ministério Público, que arquivou de imediato uma dúzia, por falta de indícios elementares. Os restantes serão investigados até que se chegue à certeza, pelo menos moral, de que o facto denunciado aconteceu e pode ser imputado ao autor denunciado. Também é óbvio que nem todos os crimes desta natureza foram reportados à CI.

4. A identificação de todos os casos de abusos de menores, alegadamente realizados por clérigos, proporciona à hierarquia o conhecimento necessário para a erradicação deste flagelo. Para este efeito, é imprescindível a identificação de todos os pedófilos padres, bem como a sua responsabilização criminal e eclesial. O instituto legal da prescrição pode inviabilizar o procedimento criminal, mas não impede que um sacerdote comprovadamente pedófilo seja afastado do ministério sacerdotal, como é, aliás, a prática actual da Santa Sé.

5. A dimensão do escândalo da pedofilia na Igreja em Portugal não é comparável, em termos numéricos, aos verificados noutros países, como a França, a Irlanda, o Chile ou os Estados Unidos da América. Mas não pode ser desvalorizado, nem adiada a implementação das medidas que impedem a sua ocorrência.

6. Esta iniciativa da CEP significa, na realidade, uma importante mudança de paradigma em relação à pedofilia na Igreja em Portugal. Até agora, tinha prevalecido uma lógica corporativa de defesa da instituição, que levou ao encobrimento de muitas situações. Mas, com a investigação da CI, a CEP optou por uma abordagem que privilegia a verdade e a justiça. Se, em tempos passados, a Igreja católica portuguesa preocupou-se sobretudo com a sua imagem, a partir de agora está empenhada em dar absoluta prioridade às vítimas e à defesa dos seus inalienáveis direitos.

7. A hierarquia católica não enjeita as suas responsabilidades no que se refere aos abusos de menores, mas, segundo a lei portuguesa, não é crime o encobrimento de situações desta natureza, por quem não tem o dever de ofício de os denunciar, como é o caso dos bispos diocesanos em relação a abusos praticados por elementos do seu clero.  

8. Os abusadores de menores, qualquer que seja o seu estatuto eclesial, devem responder, civil e criminalmente, pelos seus actos, sendo-lhes igualmente imputável a indemnização a que as suas vítimas têm direito e que deverão satisfazer com o seu património pessoal. É justo e necessário que os agredidos sejam ressarcidos pela ofensa sofrida, mas nenhum valor será suficiente para compensar o dano de que foram inocentes vítimas.

9. Enquanto pessoa moral colectiva, a Igreja não é responsável pela actuação dos seus ministros quando estes, desobedecendo gravemente aos compromissos assumidos na sua ordenação sacerdotal, ou na sua profissão religiosa, procederam criminosamente. A Igreja também não responde por outros delitos – furtos, infracções de trânsito, etc. – perpetrados, a título individual, pelos seus ministros. Aliás, a Igreja, nas pessoas dos cristãos abusados e do dano causado ao seu bom nome, é também vítima.

10. A Igreja é una, santa, católica e apostólica, mas nem todos os seus membros vivem a moral que a todos é exigida pelo baptismo. Neste sentido, a Igreja dos santos e dos mártires é também a Igreja dos pecadores, desde que, como Pedro, que negou três vezes o Mestre, estejam arrependidos e tenham um sincero propósito de emenda.

11. Desde sempre a Igreja anuncia a verdade, mesmo quando o apuramento dos factos lhe é doloroso: a existência de Judas Iscariotes nunca foi negada, nem a sua condição de apóstolo. Mas, em abono da verdade, deve ser dito também que, para um apóstolo traidor, houve onze que a Igreja católica venera como santos e mártires. Também agora, para um clérigo indigno, há dezenas de padres santos que, diariamente, se gastam no abnegado serviço de Deus e do próximo.

12. Com esta sua confissão, a Igreja católica deu à sociedade portuguesa um testemunho do seu sincero compromisso com a verdade e com a justiça. É de esperar que a sociedade civil reconheça a nobreza deste gesto e o saiba imitar. Não obstante os abusos de menores acontecerem sobretudo nas famílias, em instituições sociais, educativas e desportivas, ainda nenhuma instituição tomou, em Portugal, uma iniciativa semelhante à da CEP, que é, portanto, pioneira neste combate. Não basta acabar com a pedofilia na Igreja, é preciso pôr termo ao abuso de menores em todo o país e no mundo inteiro.

13. Nunca se poderá dizer que o drama dos abusos de menores está definitivamente ultrapassado. Contudo, a CEP já implementou as medidas necessárias para a extirpação deste mal na Igreja portuguesa e, por isso, se pode dizer, sem jactância, que as instituições católicas – paróquias, movimentos, colégios, campos de férias, etc. – são lugares moralmente seguros, onde os menores não correm o risco de serem desrespeitados.

 

P. Gonçalo Portocarrero de Almada