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Pe. Alexandre Palma
O todo é superior à parte

Passei todo o Verão de 2003 na Alemanha, numa pequena vila da Vestfália, não muito longe da fronteira com a Holanda. Lá encontrei um professor que nos queria também dar a conhecer a cultura e a história daquele país. Para lá das aulas, reuníamo-nos com ele para ver filmes e conhecer os recantos daquela localidade. Tudo servia para conversa. Sendo uma região de fronteira, tinham-se ali travado algumas das mais duras batalhas do período final da segunda grande guerra. A terra era, então, violentamente bombardeada pelos aliados. Os cemitérios da vila eram o mais eloquente testemunho de tudo isto. Uma vez perguntei-lhe como é que um alemão deste tempo convivia com a memória do nazismo. Recordo-me bem da sua resposta. Pessoalmente, disse ele, «não tenho qualquer relação» com esse período da política alemã, «eu ainda nem sequer tinha nascido». Mas, ao mesmo tempo, ele reconhecia-se membro de um povo que traz, ainda hoje, essa experiência terrível viva na sua história. Nesse sentido (e nesse sentido apenas), ele partilhava alguma da responsabilidade pelo que nas longínquas décadas de 30 e 40 tinha sucedido no seu país. Para além disso, sentia-se também ele chamado a expiar alguma coisa dessa responsabilidade nacional. Acho que, no fundo, era precisamente isso que ele fazia connosco.

O tema da responsabilidade é complexo e não pode ficar reduzido a uma alternativa enganadora. Nuns casos, a responsabilidade é remetida para as circunstâncias e os contextos de determinados actos. Assim, ela fica diluída numa comunidade de responsabilidade de contornos intoleravelmente vagos. Noutros casos, ela é toda imputada ao indivíduo que comete tais actos. Desta forma, nada haverá de comum na responsabilidade por algo cometido. Esta é a alternativa enganadora. A primeira remete para um esvaziamento ético do indivíduo, que no fundo lhe nega a liberdade. A segunda assenta numa visão liberal da ética, que atomiza as sociedades e leva a um extremo sombrio a retórica da meritocracia. A responsabilidade compete de formas diferentes (nunca será demais sublinhá-lo!) aos indivíduos e às comunidades. Desde logo, porque não há indivíduo sem comunidade; e porque não há comunidades sem indivíduos.

Vivemos, este ano, uma Quaresma diferente. O tema dos «abusos sexuais de crianças» na Igreja foi o nosso pórtico para este deserto. Da responsabilidade individual tratarão as entidades competentes (civis e eclesiais). Mas os sentimentos fortes que tudo isto gerou nas nossas comunidades confirma que este não é apenas um problema individual. Neste sentido (e neste sentido apenas), há nisto algo que é nossa responsabilidade comunitária. De pedir perdão às vítimas e, também por elas, ao próprio Deus, porque isto aconteceu em nossa casa. Poucas vezes, como este ano, farão tanto sentido celebrações penitenciais comunitárias. De criar ambientes sadios para o crescimento integral dos menores, porque assim tem de ser sempre a casa de Jesus. Precisamos de concentrar energias nesta tarefa. De acompanhar com justiça aqueles que cometeram tais actos, para bem de todos e dos próprios. É que do outro lado do deserto quaresmal há mesmo uma terra nova que queremos habitar e para qual Deus nos quer conduzir. Como no antigo Israel, a responsabilidade comunitária é mesmo uma etapa desse êxodo.

 

Pe. Alexandre Palma