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Guilherme d'Oliveira Martins
Cultura de paz, guerra incerta

A quinta-feira de Ascensão é, em Portugal, como aliás na Europa, um dia de grandes e antigas tradições. Se entre nós a data deixou de corresponder a um feriado, por troca com a festividade do Corpo de Deus, o certo é que grande parte dos feriados municipais tem essa invocação. No mundo rural havia mesmo o uso muito antigo de subir a um monte, como sinal de dedicação espiritual, de exigência pessoal e de homenagem à Ascensão aos céus do Senhor Jesus, quarenta dias depois da Páscoa e dez dias antes do Pentecostes. Mantém-se, porém, a tradição de feitura de um ramo que assinala o Dia da Espiga, que pode variar de região para região, mas tem a sua base definida. Em regra, é constituído da seguinte forma, por seis elementos: por uma Espiga de trigo, que corresponde ao desejo de fartura de pão; por Malmequeres, que simbolizam a abundância; por Papoilas que representam o amor e a vida; por um ramo de Oliveira pelo anseio de bom azeite e pelo apelo à paz; por um ramo de Videira, que almeja um bom vinho e muita alegria; e o Alecrim ou o Rosmaninho que se ligam ao desejo de saúde e força. Diz-se que o ramo da Espiga deve ser guardado em casa, junto da porta de entrada, como sinal de bom augúrio, “não devendo ser perturbado na sua quietude, apenas sendo substituído no ano seguinte por outro ramo de igual composição, mas mais viçoso”.

 

Esta simbologia, invoca três fatores de grande relevância e atualidade: o equilíbrio entre a humanidade e a natureza, a dignidade da pessoa humana como centro da vida comunitária e uma cultura de paz como base fundamental do aperfeiçoamento humano. Sendo a sociedade imperfeita, cabe-nos um esforço determinado no sentido da perfetibilidade. Pela experiência, pela aprendizagem, pela atenção e pelo cuidado, trata-se de usar o gradualismo como modo fazer da sociedade um lugar de diálogo e de emancipação. Esta ideia leva-nos à recente declaração do Secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, ao receber o Prémio Europeu Carlos V, que afirmou não ser a guerra coisa do passado, já que as divisões persistem e crescem, enquanto estamos a queimar a única casa comum. “Há famílias obrigadas a fugir de guerras ou de eventos climáticos extremos, numa escala não vista há décadas”. Urge compreender que “a paz é ilusória e a invasão da Ucrânia está a causar sofrimento e degradação do país e do povo”. Daí ser tempo de reinventar o multilateralismo, sem renunciar a uma identidade aberta – “em lugar das balas, devemos recorrer aos arsenais diplomáticos”.

 

As negociações, a mediação, a conciliação e a arbitragem têm de ser exaustivamente consideradas, a fim de se resolverem pacificamente os conflitos. “O discurso de ódio, a polarização, o racismo e a xenofobia espalham-se à velocidade de um clique e perante o crescimento destes movimentos, é necessário defender a humanidade e rejeitar o discurso que explora as diferenças e mina a coesão territorial”. A pandemia expôs “fraturas chocantes” e, num olhar para a atualidade, as diferenças entre ricos e pobres e a crise do custo de vida estão a empurrar milhões para a pobreza. É urgente, assim, construir um mundo mais justo, mais inclusivo e digno que não deixe para trás ninguém. “Não pode haver paz duradoura sem solidariedade. Não há coesão social sem direitos humanos. Não há justiça sem igualdade”. De facto, importa articular as preocupações ligadas à paz na Europa e no mundo com a defesa e salvaguarda do meio ambiente e, no entanto, “uma ganância grotesca está a punir as pessoas mais pobres e vulneráveis, enquanto destrói a nossa única casa”.

 

A circunstância atual obriga a uma reflexão muito séria e determinada que permita integrar os grandes desafios humanos perante os quais nos encontramos. A guerra às portas da Europa é a ponta de um vulcão em atividade descontrolada. A situação da Ucrânia apresenta um perigoso impasse caracterizado pela persistência de uma perigosa destruição mútua. Desde o Médio Oriente ao Sudão, verifica-se a incapacidade de regulação por via diplomática. Contudo, além da força do ódio, prevalece o egoísmo suicida da sociedade do consumo e do desperdício, que afeta gravemente a sustentabilidade humana e ambiental. Algumas vozes, porém, reivindicando soluções imediatas e totais, apenas contribuem para arrastar os problemas e para justificar adiamentos, dando espaço a quantos recusam solidariedade em relação às gerações futuras. Em lugar de medidas urgentes para garantir a justiça distributiva e preservar a equidade entre gerações, persiste a ideia de que é fatalidade a destruição do planeta… Oiçamos a voz do Papa Francisco a exortar-nos no sentido da Cultura da Paz e da salvaguarda da Natureza!

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Foto: Horto do Campo Grande