![]() |
Artigos |
|
Pe. Alexandre Palma
Autenticidade
|

![]() |
Quando um dia se escrever a história deste tempo, em algum momento aparecerá a palavra «autenticidade». Este é mesmo um dos grandes conceitos da contemporaneidade. Ele descreve algo determinante na forma como hoje tendemos a encarar a vida. Autenticidade exprime a percepção generalizada de que o grande objectivo da vida está em ser-se fiel a si próprio. Isso antes de tudo o mais e condicionando tudo o mais. Como se o grande ideal contemporâneo se declarasse no dogma: «Sê tu próprio». Assumindo-se que, no fundo, está em cada um tudo o que ele necessita para ser feliz.
Mas nem sempre assim foi. De facto, durante muito tempo a perspectiva era radicalmente outra. Até há um par de séculos procurava-se quase o contrário, ou seja, a conformação do eu às leis, à história, à cultura do grupo de que se fazia parte. Ser autêntico, no sentido de se ser único e original, poderia até acontecer, mas não era o primeiro objectivo a ser perseguido na vida. Desde então, contudo, muita coisa se alterou e o ideal da autenticidade foi-se consolidando. O filósofo Gilles Lipovetsky procura descrever as diferentes «eras» desta evolução (em A sagração da autenticidade, Edições 70). Numa primeira fase, ser autêntico era coisa difícil, penosa para o próprio, porque supunha afrontar o contexto em que se vivia. Ser autêntico era, então, uma opção pessoal, que suponha enfrentar, com custo pessoal, múltiplas adversidades. A autenticidade não estava, pois, ao alcance de todos, mas somente de alguns imbuídos de espírito heróico. Numa segunda fase, o ideal da autenticidade ampliou-se e tornou-se coisa de grupo. A busca por autenticidade tornou-se, então, um movimento social, um desiderato que as comunidades deveriam defender e mesmo promover. A elas competia agora criar as condições legais e sociais para que o ideal da vida autêntica pudesse ser alcançado sem os penosos obstáculos enfrentados pelas gerações anteriores. Por fim, chegámos, sempre segundo Lipovetsky, a uma espécie de normalização da autenticidade. Por ela já não precisam de lutar nem indivíduos nem movimentos sociais. Essa aspiração normalizou-se no tecido cultural, a tal ponto que (quase) se tornou ininteligível qualquer argumento que pareça desafiar esta «sagração da autenticidade».
Este processo é tecido com elementos francamente positivos. Há nesta demanda por autenticidade, desde logo, o reconhecimento de que cada ser humano é único e, como tal, precioso. Essa demanda é possível graças a contextos democráticos, nos quais se reconhece uma legítima esfera de poder a cada sujeito. Para além disso, esta procura exprime uma atitude fundamental de optimismo face à vida. A par destes ou de outros factores positivos, há nesta exaltação da autenticidade qualquer coisa de ingénuo e mesmo de errado. Não é verdade que o indivíduo se deva ou sequer se possa autoproduzir. Como é falacioso ver na conformação do eu a algo que o transcenda, necessariamente, uma violência. Pelo contrário, nessa abertura o sujeito descobre coisas e desenvolve capacidades a que sozinho nunca poderia aceder.
Tudo isto tem um forte impacto no perfil crente dos dias de hoje. Procura-se também uma autenticidade da fé. Esta torna-se mesmo a grande condição para um assentimento religioso. Mas neste regime, isso passa por dinâmicas fortemente individuais. A proposta da instituição não vale por si, mas se for experimentada na primeira pessoa. A lógica da fé não vale por si, mas se for suportada pela emoção que comove. A pertença a um corpo não vale por si, mas se ele legitimar as originalidades de indivíduos e grupos na expressão da sua fé. A Igreja ainda se afadiga para tentar integrar os desafios trazidos por esta era da autenticidade. Não se trata de encontrar a solução. Trata-se de reconhecer e conhecer o fenómeno. Para que esta busca actual por autenticidade pessoal seja satisfeita pela autenticidade do Evangelho.
Pe. Alexandre Palma
» Autenticidade
» Dignidade
» O todo é superior à parte
» Recomeçar
» Maria e os jovens
» Ainda o Sínodo