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À escuta da realidade?, por Guilherme d?Oliveira Martins
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E é o valor universal da dignidade das pessoas que está sempre presente, ao longo destes textos. Afinal, o projecto “Betânia” visa pôr em prática, a partir do exemplo e da experiência, o valor da dignidade, e tudo quanto daí decorre. “Acreditamos que o ser humano é relação e é na tomada de consciência desta sua dimensão relacional que hão-de alicerçar-se as bases para novos relacionamentos e solidariedades que estão faltando tanto nas nossas sociedades, demasiadamente marcadas por egoísmos vários, competitividade agressiva e excludente e conflitualidades latentes ou declaradas. Betânia quer encorajar o encontro como forma de estar na vida: encontro da pessoa consigo própria, encontro com o outro, encontro com o cosmos e encontro com Deus”.
Ao seguirmos os textos, vamos encontrando reflexões que permitem tomar consciência de que a relação interpessoal vai maturando e vai abrindo novos horizontes na “sabedoria do coração”, num tempo em que “a nossa civilização e a nossa cultura ocidental deixaram-se corroer – e corromper – por um individualismo exacerbado que já não é capaz de descobrir que o outro é parte de si própria/o e todos parte do Cosmos”. Daí que importe ver “para além do sucedido”, ou ter a “sabedoria de ir para além da ansiedade” e vencer o mal com o bem, como a autora nos propõe de um modo persistente, claríssimo e sereno. E donde vem a ansiedade? No plano pessoal, “da ambição de mais ter, mais conhecer, mais viajar, mais aparecer, mais acumular”. No plano colectivo, “de uma frustração subliminar que se alimenta do desencontro, óbvio, entre aquilo que se tem por desejável e se afirma como meta e a realidade da nossa impotência para o conseguir”. Thomas Merton, diversas vezes invocado no livro, afirma, aliás, de modo inquietante: “Enquanto tiverdes a liberdade de optar pelo mal, não sois livres. Uma escolha má destrói a liberdade”. Não se trata, porém, de limitar a liberdade e a sua fundamental importância, mas de tomar consciência das injustiças e dos motivos de inconformismo e de indignação. Como poderemos ficar indiferentes à persistência da grande pobreza mundial, aos mecanismos injustos de apropriação da riqueza produzida, às doenças e epidemias, ao desrespeito do valor da vida humana, à emergência de uma cultura de violência, à proliferação das armas, à perda ou ao enfraquecimento dos valores humanos básicos de verdade, lealdade nos negócios, solidariedade, cooperação, serviço à colectividade ou defesa dos mais fracos?
Urge compreender, com António Machado, que “a história não caminha ao ritmo da nossa impaciência” e que temos de “atravessar o mar dos medos com as velas da esperança”. E não disse José Tolentino Mendonça: “Em certos dias, nem sabemos porquê / Sentimo-nos estranhamente perto / Daquelas coisas que buscamos muito / E continuam, no entanto, perdidas / Dentro da nossa casa”? Onde estás? Onde está o teu irmão? São perguntas recorrentes, para as quais temos de encontrar respostas que tornem mais humana a sociedade e as relações que nela se estabelecem. Daniel Faria fala, por isso, da capacidade criadora: “E ser faúlha onde a morte vive / E a vida rompe”. A cada passo, as palavras obrigam-nos a reflectir sobre o presente e o futuro, mas o fundamental é entendermos qual o nosso lugar enquanto participantes activos da obra criadora do Universo.
Num tempo em que o dilema “servir ou servir-se” leva a que o segundo termo se vá impondo, temos de saber ouvir, tirando consequências, o seguinte: “talvez seja mesmo necessário fazer apelo a valores humanos fundamentais – como os da cidadania ou da honradez, a solidariedade com o todo ou o apreço pela cooperação – para resistir às tensões nascidas de divisões e conflitos gerados pela mesquinhez ou a vingança de quem só vê a árvore dos seus interesses mais imediatos e não se dispõe a construir a harmonia da floresta”. De facto, a felicidade não pode comprar-se. Mas a felicidade com que lidamos e que perseguimos torna-se paradoxal, na expressão de Lipovetsky. Aragon dizia que “quem fala de felicidade tem muitas vezes os olhos tristes”. Afinal, a sociedade atomizada e fragmentada da pós-modernidade está toldada pelo “consumo voraz, embalado na ilusão de uma felicidade alcançada por esta via e ao dispor (falso) de todos na sociedade democrática”. Importa encontrar caminhos e métodos novos, que permitam respondermos sobre o que nos faz correr. E ao ouvir do vento, em nome do espírito de Betânia, sentimos que há um “valor acrescentado da alegria partilhada” e que o silêncio é um valor a preservar, em nome de uma vida simples, da escuta e da contemplação, do cuidado das relações com os outros, do reconhecimento do lugar da beleza e do compromisso responsável com a transformação do mundo. Mas como alimentar a esperança? Manuela Silva recorda Charles Péguy, que falava da virtude da Esperança como “petite espérance”, como esperançazinha, vista como uma criança que “corre a par das suas irmãs maiores, a Fé a Caridade, e faz saber que, afinal, é ela, a pequena esperança, que sustenta as duas outras virtudes e as fortalece”. Mais do que os discursos heróicos, trata-se, sim, de partir das pequenas coisas, da fragilidade da vida, na direcção do que tem valor e do que é fundamento da dignidade humana e da sua dimensão universal. E assim a mensagem do livro assenta numa ideia muito simples: “valorizar o sentido da justiça é tarefa de todos”. Daí que se nos exija que vivamos uma “hora de profetas que aliem uma clara visão de futuro com o rigor de uma acção comprometida com a luz que ao longe avistam”.
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