
Senhor Patriarca, há quase 11 anos foi-lhe confiado este serviço na Igreja de ser bispo da diocese de Lisboa, substituindo o cardeal D. António Ribeiro. Esta década foi um tempo de uma transição muito grande na vida da Igreja e do mundo. Qual o seu olhar sobre o passado?
Antes de mais, esse meu olhar sobre o passado dificilmente tem como fronteira aquela que colocou, há dez, onze anos, porque eu sou bispo desta diocese há mais de trinta anos!
Olhando para o passado, é bom termos em conta que a sociedade e a Igreja – que acompanha sempre, de certo modo, as mudanças da sociedade – sofreu nestes últimos cinquenta anos alterações que nós, que as vivemos, ainda temos consciências mas que a geração jovem não tem. Na Igreja, essas alterações vêem-se, sem dúvida nenhuma, no Concílio Vaticano II.
Em Lisboa, a Igreja passou de uma época de um certo restauracionismo – que foi o pontificado do Cardeal Cerejeira – em que saiu do século XIX até meados do século XX numa situação de relação com a sociedade muito conflituosa e não definida. Portanto, a Igreja vinha de um período de cristianismo de massas, sociológico, em que ser português era sinal de ser católico. O Concílio Vaticano II corresponde a uma mudança grande na própria fisionomia das sociedades ocidentais – não nos podemos esquecer que foi esse o motivo que levou João XXIII a convocar o Concílio, naquele celebre discurso em São Paulo Fora de Muros, em 1959.
É um discurso que define uma época…
Sim, é um discurso que define uma época, em que o Papa diz que o mundo mudou, a sociedade mudou. A questão que então se colocava era: o que é que a Igreja tem de fazer para continuar a ser missionária, a exercer a missão neste mundo moderno? Esta preocupação vai estar muito presente na Gaudium et Spes, mas todo o Concílio é uma resposta a esta pergunta, que, quanto a mim, tem duas alíneas: por um lado, a Igreja tem que se encontrar com o seu próprio mistério, tem que ser ela própria, não sociologicamente mas na linha da fé, daquilo que é o seu próprio mistério e que é, no fundo, a sua novidade e a sua força; por outro, a Igreja não se pode isolar deste mundo, não o pode condenar, mas tem de se assumir como parte desta sociedade, tem que a olhar com esperança, tem que saber ler sinais, encontrando na realidade do mundo portas abertas para a mensagem. E aqui está tudo dito, o que quer dizer que este período ainda não acabou.
Esse tema da leitura dos sinais está muito presente na sua vida, na sua opção teológica. Quais foram os sinais que mais o interpelaram e que mais nos devem interpelar como Igreja?
O mundo hoje funciona, mas não funciona linearmente. Quem tentar encontrar na história uma linha de coerência tem dificuldade, porque a história funciona por contradições e por paradoxos. Tendo isso em conta, houve grandes mudanças que são também fruto da presença da Igreja na história e que são grandes desafios para a Igreja. Por exemplo: uma consciência colectiva da dignidade humana – os grandes valores da dignidade humana, hoje, parece que foram assumidos por uma sociedade laica, por uma sociedade profana, mas não nos podemos esquecer que eles são fruto do cristianismo; uma consciência colectiva de paz – é uma coisa que, por exemplo, na minha juventude não existia. Na minha juventude nós aceitávamos facilmente que uma coisa que estava mal feita se resolvia à pancada. Uma guerra era quase justificada. Hoje há uma consciência colectiva de que a guerra e a violência não levam a nada. Portanto, isto ainda não é a paz bíblica, como a Igreja a proclama, mas é um dado fundamental para as pessoas perceberem que a paz é possível.
Por outro lado, desencadeou-se um sentido novo da solidariedade. Nós, cristãos, sabemos que a solidariedade não chega, que é preciso ir mais longe no sentido de um amor fraterno empenhado. Eu só tenho pena que da mesma maneira que se apregoam tanto e tão facilmente os desastres da humanidade, que não haja estudos mais objectivos e mais publicitados do que é hoje, em todo o mundo, a avalanche da generosidade partilhada. Este é um valor positivo da sociedade contemporânea.
A história mostra que aquilo que faz verdadeiramente evoluir a história são estas tomadas de consciência colectiva. E aqui a Igreja pode ter um papel importante, na medida em que se nós não estivermos nas primeiras filas do desânimo, mas tivermos a resistência dada pela nossa fé e pela nossa esperança, e se estivermos na primeira linha dos que acreditam que a humanidade tem um futuro, podemos ajudar a solidificar e a aprofundar essa esperança colectiva.
Quais são, então, os grandes desafios pastorais da Igreja, hoje?
No presente, o grande desafio da pastoral não é responder ‘taco a taco’ às questões e dificuldades que vão surgindo. O grande desafio da Igreja é ser ela mesma, confrontar-se com o seu mistério, na consciência que essa é a sua verdadeira força e a sua verdadeira diferença. Aquilo que verdadeiramente marca a diferença da Igreja em relação ao conjunto do mundo em que está inserida, é o viver de Jesus e viver o Evangelho das bem-aventuranças. Pô-lo em prática e vivê-lo na raiz do seu coração. Isto provoca, como tenho sublinhado, uma redescoberta da colaboração entre Deus e o Homem na construção da própria vida humana. Com os ateísmos teóricos e militantes e com este ateísmo prático em que o homem pensa que depende só de si mesmo ou do vizinho do lado, perdeu-se a ideia da importância da abertura à acção de Deus. Nós, os cristãos, também pecamos um bocado relativamente a isto. Temos que redescobrir que a vida humana é algo onde Deus intervém, continuamente, discretamente, no silêncio do seu mistério. Se nós acreditarmos profundamente nisto, passamos a dar um relevo muito maior àqueles meios que são concretos, visíveis, palpáveis, de Deus interagir connosco e de interagir na construção da nossa vida.
Nesta medida, o Sínodo sobre a Palavra de Deus foi um alerta. Um alerta muito grande, porque aí está um instrumento à minha disposição, permanentemente a interpelar-me, que nós temos quase arrumado, sem lhe dar importância e sem aceitar o incómodo que ela traz continuamente à minha liberdade e à minha maneira de viver.
Muitas vezes fazemos da liturgia e do acto celebrativo da fé algo que parece distante da vida. Como vê esta ‘tensão’ entre a liturgia e a vida?
Um dos perigos que corremos é falarmos de liturgia referindo-nos somente à celebração e ao culto. A palavra liturgia significa tudo aquilo que é expressão do louvor de Deus. Liturgo é aquele que faz da sua vida um acto de louvor. Era importante que os cristãos tivessem consciência que mesmo no silêncio do seu quarto, ou na discrição da sua vida privada, se o que estão a fazer é feito na relação com Deus, eles estão a ser liturgos. Dizendo em linguagem mais simples: se ‘sim’ ou ‘não’ o Deus em que eu acredito é um Senhor distante, ou se é um Deus amigo, companheiro de viagem de todos os momentos, e uma força que é maior que a minha e que me ama – o cristianismo tem essa certeza, que o Senhor não existe para me castigar, nem para me julgar, mas está atento a cada pormenor e sobretudo conhece o coração do homem como o próprio homem não o conhece.
Uma das coisas que durante muito tempo me incomodava era pensar por que é que Deus não era mais claro, não se exprimia melhor. Hoje acredito que o silêncio de Deus é a coisa mais preciosa que Ele nos dá! Quanto mais Ele se exprimisse da maneira que eu queria, mais se confundiria com este dia-a-dia. O silêncio de Deus é a afirmação da sua transcendência e da sua solicitude permanente e amorosa em relação ao Homem.
Qual poderá ser o papel da consciência comunitária?
A dimensão comunitária da vida é algo que o Concílio Vaticano II deu expressão dentro da Igreja e mesmo fora dela. Uma das consequências culturais talvez mais gravosas para a nossa época foi que o descobrir o valor da pessoa humana, da liberdade individual, da inteligência individual com capacidade de busca de verdade, levou a uma compreensão da vida humana em que, pouco a pouco, se foi relativizando a ideia de comunidade e de comunhão. As próprias filosofias políticas desenvolveram muito a ideia da sociedade, mas cautela porque a ideia de sociedade não exprime necessariamente o que é uma comunidade. A sociedade é uma harmonia das liberdades individuais. E nós vemos que hoje os líderes das sociedades estão quase limitados a administrar o uso e o abuso da liberdade individual. A comunidade é outra coisa distinta. Acredito que este desafio da comunidade está lançado. Penso que as crises pelas quais a humanidade está a passar vão certamente levá-la a redescobrir que não há vida individual sem vida comunitária.
É nesse espírito que convoca a Assembleia do Presbitério de Lisboa.
A Assembleia do Presbitério de Lisboa é uma coisa muito modesta. Tem sobretudo em conta uma coisa muito simples, mas que a temos de descobrir cada vez mais profundamente. É que esta distinção – quase à maneira dos poderes humanos – entre bispos, padres e leigos é pouco evangélica. Aquilo com que o Senhor dotou a sua Igreja foi da participação do seu sacerdócio, ou seja, da sua capacidade de servir, de ser ponte com Deus. Nós somos uma fraternidade, uma comunhão, que recebeu do Senhor esta obrigação de servir o seu povo como Ele serve e gosta de servir, com a plenitude do seu sacerdócio.
Senhor Patriarca, pedia-lhe um último olhar: para o futuro…
Primeiro resume-se a uma coisa muito simples: não desistir. O que eu desejo para o futuro não é desligável do que referi sobre os anseios do presente da Igreja. Reservo uma abertura grande ao que eu não sei sequer imaginar do futuro e que está no tal silêncio de Deus. O grande contributo que podemos dar à construção da comunidade, da Igreja no seu todo e da humanidade como realidade global é exactamente o acreditarmos com profundidade, nunca desistindo daquilo em que acreditamos.