Entrevistas |
I República: Capelães portugueses na I Guerra Mundial
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Com a instauração da I República, o Estado tornou-se laico e com isso surgiram alguns atritos entre católicos e republicanos. Nas comemorações do centenário da República, a VOZ DA VERDADE inicia um ciclo de entrevistas sobre a religião e a República. Para Maria Lúcia de Brito Moura, do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, a participação dos capelães portugueses na I Guerra Mundial serviu para mudar a opinião pública relativamente aos padres.

A 20 de Abril de 1911 foi decretada a Lei da Separação do Estado e da Igreja, um decreto que reconhece e garante a plena liberdade de consciência a todos os cidadãos portugueses e estrangeiros residentes em Portugal, declarando que a religião católica deixava de ser a religião do Estado e que todas as igrejas ou confissões religiosas eram igualmente autorizadas. Contudo, esta lei não foi muito bem aceite.

Não, porque a lei não separava. O Estado intervinha na vida da Igreja, dificultando o exercício do culto e considerando-se proprietário de todos os bens que estavam na posse da Igreja – o que envolvia, não só os templos mas as residências paroquiais, os seminários, as alfaias religiosas, as imagens… A lei continha disposições que permitiriam o encerramento da maior parte dos templos num curto prazo de tempo. Isso não viria a acontecer porque os governos foram-se apercebendo que tais medidas seriam perigosas para o regime. Não podemos esquecer que um largo sector dos republicanos, certamente a maioria, defendia a tolerância e condenava os excessos de uma minoria de livres-pensadores radicais.

No respeitante ao culto fora dos templos a lei concedeu a faculdade de autorizar ou proibir as procissões (tanto do agrado dos povos) e os funerais religiosos às autoridades civis locais. Assim, esses cortejos religiosos eram permitidos numas zonas e noutras não. Tal situação deu origem a muitos conflitos, tendo-se registado casos de desobediência, castigados com a prisão dos responsáveis. Nos motins mais graves chegou a haver mortes.

 

Em 1914 começa a guerra no continente europeu. Qual a posição da Igreja face à intervenção de Portugal no conflito?

Embora muitos católicos preferissem a paz e rezassem pela paz (o que irritava os intervencionistas) a verdade é que a retórica guerrista contagiou inúmeros párocos que, nas suas igrejas, faziam ver aos fiéis que o combate contra a Alemanha era um dever para com a Pátria. O Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. António Mendes Belo, pouco depois da declaração de guerra, enviou aos párocos um texto com uma “exortação”, no sentido de união entre todos os portugueses, lutando pela Pátria e esquecendo ressentimentos. Contudo, a Guerra veio abrir uma nova ‘frente’ no conflito religioso. Milhares de soldados portugueses iam partir para a Flandres ou para África e a questão estava em saber se o governo permitiria a presença de capelães na zona de combate. Lembro que, depois da lei da separação, o exército já não tinha capelães. Mas agora vivia-se um estado de excepção. Os católicos lutaram para que fosse autorizada a assistência religiosa junto dos combatentes.

Porém, um sector republicano era hostil a tal pretensão por temer um regresso ao passado. Alguns encaravam a presença de capelães como tentativa da Igreja para catequizar os soldados. A guerra, deste modo, fez surgir novos conflitos na sociedade. Pressionado, o Governo cedeu, em parte, e 15 capelães foram autorizados a ir como voluntários – não recebiam qualquer subsídio do Estado – para a Flandres, na França, onde, no início, sofreram com o anticlericalismo de alguns militares portugueses que pressionavam o governo de Lisboa no sentido de não permitir que os capelães aproveitassem a oportunidade para fazer catequese junto dos combatentes. Na prática, procurava-se que os capelães se limitassem a realizar os funerais dos soldados que tivessem declarado anteriormente o seu desejo de funeral religioso. Mas essa situação viria a alterar-se um tanto.

 

Qual foi então o motivo dessa mudança?

Podíamos apontar diversas explicações. Em primeiro lugar, lembro que os ingleses, com quem os portugueses contactavam, davam grande importância aos serviços religiosos, tendo capelães pertencentes às diversas religiões que existiam na Inglaterra. Quando tinham nos seus hospitais feridos portugueses, chamavam um dos nossos capelães, concedendo todas as facilidades de transporte. Isso mesmo foi declarado pelo chefe dos capelães, o cónego Patrocínio Dias (que viria a ser Bispo de Beja). Não pode esquecer-se que a partir de Dezembro de 1917, com a revolta que permitiu a ascensão de Sidónio Pais, a situação política tornou-se muito mais favorável aos católicos. Já depois da batalha de La Lys (Abril de 1918), foi autorizada a ida de mais capelães.

A propósito da ligação com os ingleses, é interessante constatar que, com frequência, soldados portugueses rezavam lado a lado com soldados ingleses, cada um na sua língua. Muitas vezes, as próprias populações francesas assistiam às celebrações religiosas, acompanhando, em francês, os cânticos dos portugueses. Os nossos capelães auxiliavam, em alguns casos, os párocos locais, chegando a pregar em francês. É importante referir que os padres portugueses não se limitaram às funções religiosas, preocupando-se com a ocupação dos tempos livres dos combatentes…

 

Tempos livres? Em plena guerra?

Sim. Os combatentes passavam cerca de seis dias nas trincheiras e outros seis na retaguarda. Ao enviarem os expedicionários para a guerra, o Governo parece não ter-se apercebido que os soldados teriam necessidade de ocupar os tempos livres. Os capelães portugueses irão ter um papel fundamental (apreciado até pelo general Tamagnini de Abreu), conseguindo “casas do soldado” com bibliotecas, instrumentos musicais, jogos educativos. Forneciam gratuitamente tudo o que era necessário para escrever, encarregando-se eles próprios de escrever e ler as cartas aos analfabetos. Para estes criaram mesmo cursos de alfabetização. A acção dos capelães foi reconhecida e muitos deles foram condecorados pelos serviços prestados.

 

Se o Estado não lhes pagava, como é que os capelães conseguiram o dinheiro necessário às suas actividades?

Foi criada em Portugal uma “comissão central de assistência religiosa em campanha” que tratava de angariar donativos para que os capelães pudessem cumprir as suas obrigações. Em todas as dioceses organizavam-se peditórios com esse objectivo. Diversas organizações femininas – entre elas, destaco as Madrinhas de Guerra e a Liga da Acção Social Cristã – colaboraram com os capelães.  

 

Pensa que a guerra contribuiu para alterar a imagem do padre junto da opinião pública portuguesa?

Penso que sim. Em muitos sectores da sociedade tinha-se uma visão muito desfavorável acerca dos padres. Acredito que, no ambiente terrível da guerra, muitos terão reconhecido que os capelães – alguns dos quais revelaram coragem, generosidade, capacidades de sacrifício e de iniciativa – eram muito diferentes da imagem que frequentemente, era divulgada. Sublinhe-se que os jornais católicos, em Portugal, publicitavam muito a acção dos capelões, despertando a simpatia de grande parte da população. Assim sendo, em 1921, quando chegaram a Portugal os restos mortais dos soldados desconhecidos que representavam todos os combatentes mortos na guerra (na França e em África), os capelães estiveram presentes nas cerimónias de homenagem. O Cardeal Patriarca de Lisboa, igualmente convidado, discursou no Congresso Republicano. A presença de um bispo numa cerimónia republicana seria impensável poucos anos antes. Um longo caminho fora percorrido.  

 

 

 


Perfil:

Doutorada em História Contemporânea pela Universidade de Coimbra, Maria Lúcia de Brito Moura foi professora de História do ensino secundário e integra actualmente o Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa.

 

Maria Lúcia de Brito Moura conta “Um episódio da ‘guerra religiosa’ na I República”

No próximo dia 18 de Novembro, pelas 17h, Maria Lúcia de Brito Moura profere uma conferência na Universidade Católica, em Lisboa, sobre o tema “Um episódio da ‘guerra religiosa’ na I República: a assistência aos combatentes na Grande Guerra”.

A conferência tem entrada livre e insere-se no Seminário ‘Religião, Cristianismo e Republicanismo’.

 

O ‘Cristo das trincheiras’

O ‘Cristo das trincheiras’ é uma das raras relíquias recuperadas pelas forças portuguesas em França durante a I Grande Guerra. Merece uma referência especial por retratar a fé de quem se sentia abandonado num país estrangeiro a combater numa guerra. A imagem foi trazida para Portugal 40 anos após o final da guerra, encontrando-se actualmente no Mosteiro da Batalha, junto do túmulo do Soldado Desconhecido.

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