Artigos |
apagar
O Estado Social em debate (por Pedro Vaz Patto)

A propósito da revisão constitucional, vêm sendo discutidas entre nós questões ligadas à reforma e ao futuro do chamado Estado Social, isto é, o Estado que se propõe garantir, de uma ou outra forma, direitos com o direito à saúde, ao ensino, à habitação ou à segurança social. Para além da polémica partidária, nem sempre esclarecedora, é oportuno reflectir a respeito dos princípios envolvidos nestas discussões.

O Estado Social pode considerar-se hoje um precioso legado da cultura europeia, que não será abusivo ligar à raízes cristãs dessa cultura e que, na sua génese histórica, também não é alheio ao contributo da doutrina social da Igreja. Inspira-se, de um modo particular, num princípio basilar dessa doutrina: o princípio da solidariedade. João Paulo II, na carta encíclica Sollicitudo Rei Socialis (n. 38) caracterizou a solidariedade como «a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos». É esta responsabilidade pelo destino de cada um, em especial dos mais fracos, que a sociedade e o Estado inspirados pela solidariedade devem assumir. Serão de rejeitar modificações do Estado Social que ponham em causa este princípio.

Mas a doutrina social da Igreja também tem alertado para os perigos a que uma visão centralista, assistencialista e desresponsabilizante do Estado Social pode conduzir. «Ao intervir directamente, irresponsabilizando a sociedade, o “Estado assistencial” provoca a perda de energias humanas e o aumento exagerado do sector estatal, dominando mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de servir os utentes e levando a um acréscimo enorme de despesas» - assim se exprimiu João Paulo II na carta encíclica Cantesimus Annus (n. 48). Há que relembrar, a este propósito, outro princípio basilar da doutrina social da Igreja: o princípio da subsidiariedade. De acordo com este princípio, o Estado, nos âmbitos da economia, da solidariedade social ou do ensino, não deve substituir-se à livre iniciativa das pessoas e comunidades menores, mas apoiar e coordenar essa iniciativa, intervindo quando ela não é suficiente, sempre tendo em vista o bem comum.

O acréscimo de despesas, em particular as que decorrem dos progressos da tecnologia médica e do aumento da esperança de vida, sobretudo associado à queda da natalidade, com o consequente decréscimo das receitas que deveriam cobrir essas despesas, vem tornando cada vez mais premente a questão do financiamento do Estado Social. Por isso, há quem sugira que se alterem regras de universalidade e gratuidade que têm caracterizado a prestação de serviços nesse âmbito. Passariam a ser exigidas contrapartidas a quem possua meios económicos para pagar esses serviços. Não me parece que alterações deste tipo ponham necessariamente em causa o princípio da solidariedade, desde que se mantenha a garantia de que ninguém possa ser privado desses serviços por insuficiência de meios económicos. A gratuidade é uma ilusão, porque o custo dos serviços acaba sempre por ser pago, podendo ser mais justo e responsabilizante que o seja, pelo menos parcialmente, pelo seu directo beneficiário (o estudante ou o utente de uma auto-estrada, por exemplo) do que pelo contribuinte em geral. Estudos vários têm demonstrado que o Estado Social, na sua universalidade e gratuidade, sob certos aspectos tem beneficiado mais a classe média (que tem mais facilidade de acesso a serviços de ensino universitário, por exemplo) do que os mais pobres.

Parece-me, no entanto, que este raciocínio não deve aplicar-se ao sector da saúde, não sendo aqui suficiente garantir a gratuidade (ou “tendencial” gratuidade) aos pobres. É que neste âmbito a solidariedade deve unir não apenas ricos e pobres, mas também pessoas sãs e pessoas doentes. À luz desta visão solidária, não será aceitável conduzir à ruína económica pessoas remediadas acometidas por doenças cujos tratamentos são particularmente onerosos (e tendem a sê-o cada vez mais) e não cobertos por seguros. E se é verdade que o pagamento de serviços médicos pode evitar o seu uso desnecessário, também pode, quando muito significativo, conduzir ao seu não uso em caso de objectiva necessidade. Está em jogo a saúde pública, e não apenas a saúde individual.

Aqui ficam, pois, algumas ideias para um debate, que, como disse, deve estar para além da polémica partidária e situar-se no plano dos princípios.