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Emmanuel Mounier (por Guilherme d?Oliveira Martins)
À memória de Manuel Bidarra de Almeida.

 

Emmanuel Mounier (1905-1950), cujos 60 da morte se assinalam este ano, foi um dos autores cristãos que mais profundamente pensou o tema da democracia. Guy Coq escreveu uma interessante obra [Mounier - L’engagement politique(Michalon, 2008)] que nos conduz sabiamente à reflexão sobre a essência da democracia.

Nos Cahiers de l’UNESCO, Abril de 1949, o filósofo escreveu Réflexions sur la démocratie, abordando o problema da tendência totalitária das democracias ditas populares, nas quais «o ideal é a anulação de toda a distância, da distância entre governos e governados, entre o Estado e a nação, todos se tornando governantes (…), da distância entre governados pela generalização do conformismo e da solidariedade no terror político». Jacques Le Goff salientou, na revista Esprit sob o título Totalidade e distância (Janeiro de 1983), a importância dessa questão. «É aí que reside a falha, o ponto de fractura, o lugar da falta que põe a tónica nas referências muito sólidas duma crítica radical do totalitarismo». É a ilusão da sociedade perfeita que está na origem dos totalitarismos. Aí tudo aponta para uma conciliação imposta de interesses e valores. E Hannah Arendt foi quem nos alertou para os riscos que permanentemente existem nas sociedades contemporâneas e que abrangem a banalização do mal e a manipulação das massas.

 

Para o pensador católico, a sociedade onde a distância (entre Estado e cidadãos) se anula é a que podemos designar como a de «nós outros», que se esgota e se confunde na ausência de fronteiras entre o próprio e o alheio, entre nós e os outros, levando à promiscuidade pública. Depois dessa sociedade sem distância, fala-nos da «sociedade vital», cujo elo é constituído pela vida em comum e por haver um fluxo vital, biológico e humano, para viver melhor. Aí ainda não há a relação de pessoa a pessoa – «cada um fica no plano de uma vaga representação do todo», faltando a ligação entre os valores e cada «vocação pessoal». Já não temos a sociedade de nós outros, mas estamos ainda perante uma sociedade fechada. «Se ela não for animada do interior por uma verdadeira comunidade espiritual, tende a fechar-se sobre uma vida cada vez mais mesquinha e sobre uma afirmação cada vez mais agressiva». Por último, Mounier fala da «sociedade razoável», que procura compreender a ciência, a razão objectiva e o direito como mediadores fundamentais, ainda que insuficientes para assegurar a existência de uma comunidade pessoal criativa e de responsabilidades partilhadas. Segundo Mounier, a maneira de chegar ao compromisso leva-nos à «distância unitiva». Assim a verdadeira comunidade deve ser a «pessoa de pessoas», na qual o lugar de cada um é insubstituível e essencialmente desejado pela ordem do todo.

 

A distância é um modo de protecção e de salvaguarda da esfera pessoal de cada um, devendo ser completada pela solidariedade voluntária, que aproxima sem os anular os membros da comunidade, dando um sentido positivo à dignidade da pessoa humana. Esta «distância unitiva» pressupõe a ligação da pessoa à comunidade, a consideração da comunidade como uma «pessoa de pessoas», mas também a noção de compromisso ou empenhamento pessoal, que Mounier encontrou com Paul-Louis Landsberg, que se juntou à equipa da Esprit em 1934. Uma experiência semelhante à relatada por Georges Bernanos em Les Grands Cemitières sous la Lune levou Landsberg a dizer que não há causas puras e que o «compromisso» obriga a viver os valores como realidades incertas e imperfeitas, de difícil compreensão. E o «compromisso» assume-se como apelo à responsabilidade. Trata-se de uma «viragem metafísica», de um desenvolvimento de ordem interior por influência dos acontecimentos exteriores.