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Andar para trás? (por Hermínio Rico, sj.)
Estamos todos habituados a que, no reino dos bens económicos, o desenrolar normal das coisas seja sempre no sentido do aumento. Um par de séculos de desenvolvimento económico fez do fenómeno uma coisa totalmente nova e até então desconhecida na história da humanidade.

Para aqueles que foram beneficiando desta acrescida disponibilidade de bens, a ideia de progresso foi passando rapidamente de miragem ideológica ao estatuto de inexorável lei das coisas. E, na sua dimensão de crescimento acumulativo, ganhou foros de necessidade indispensável e de direito inviolável. Os aumentos são devidos cada ano simplesmente porque o tempo passa e o tempo impreterivelmente traz consigo mais, mais de tudo. Parece só haver um caminho: para a frente e sempre a subir. E para a frente significa aumento quantitativo da riqueza disponível para consumir.

Mas agora vemos a nossa vida a andar para trás. Em vez de aumentos, vemos e sofremos cortes, reduções, estagnações nas carreiras, retrocessos. E a coisa nem sequer aparece disfarçada pelas ilusões de aumentos fictícios que a inflação depois rápida e gulosamente come. Os números absolutos baixam mesmo. O nível de vida vai descer, em vez de subir, por muito pouco que seja, pelo menos nominalmente, como (pensamos já sem pensar) é suposto.

O que é que se passa? É apenas um engasgo no sistema e rapidamente voltaremos à sequência “normal” das coisas? Ou há de facto uma mudança que nos exigirá uma alteração da nossa forma de pensar, até pormos em questão o que é “normal” e não é? Como país, é claro que andamos há muito tempo a gastar emprestado e que não temos sido capazes de crescer para, no futuro, podermos pagar o que devemos. A zona do mundo em que nos integramos dá também sinais de estar a ser ultrapassada e a perder cada vez mais dinamismo. As realidades dum mundo finito não enganam. Não se pode crescer sempre. Há limites. Mais ainda. Os níveis de consumo a que a (pequena) parte mais favorecida da humanidade se habituou nas últimas décadas não são sustentáveis, muito menos podem ser paulatinamente alargados globalmente a cada vez maiores populações. Simplesmente, não há suficiente para todos poderem vir a ter tanto.

Até agora, a maneira de trazer cada vez mais pessoas a usufruir da satisfação das suas necessidades básicas, apoiava-se sobretudo no crescimento. Havendo mais, mais chegava a um maior número, mesmo que os benefícios do aumento fossem desproporcionalmente partilhados. Estamos, a nível de Portugal e ao nível do mundo, ainda muito longe de ter facultado a todos o acesso aos mínimos de qualidade de vida. Se o crescimento vai abrandar por um longo período de tempo, ou, ainda mais duro, se há decrescimento que afecta todos, mesmo aqueles que não têm margem de supérfluo para cortar, crescem as desigualdades e as situações de carência. Uma coisa cresce, então, as exigências de justiça. Continua, com ainda maior premência, a ser preciso redistribuir a riqueza. Sem crescimento, a redistribuição já não pode ser embrulhada num processo em que todos ganham. Agora, será preciso redistribuir não apenas o acréscimo que se vai alcançando, mas o já adquirido e tido como seu pelos mais beneficiados (mesmo que não muito, de facto).

A justiça que implica a redistribuição faz apelo, em situações de “andar para trás”, a conceitos e práticas como a partilha e a caridade. Este é território onde os cristãos devem dar testemunho e mostrar liderança. E até nem pensam que isto seja andar para trás em qualidade de vida.