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Mudar de sexo (por Pedro Vaz Patto)
Estão em discussão na Assembleia da República uma Proposta de Lei (do Governo) e um Projecto de Lei (do Bloco de Esquerda) que permitem a mudança de registo de sexo desde que diagnosticada a transexualidade e independentemente de alguma mudança anatómica. Estes dois diplomas seguem a orientação das chamadas “leis de identidade de género”, de que é exemplo a Lei espanhola aprovada em 2007.

Numa primeira apreciação, poderá dizer-se que a mudança do registo oficial do sexo de uma pessoa, de modo a corresponder ao seu “sexo social desejado” (na expressão do Projecto do Bloco de Esquerda), nenhuma perturbação causará a outras ou à sociedade em geral. A situação das pessoas transexuais, e o seu sofrimento, não podem deixar de merecer consideração. Mas não me parece que sejam alterações jurídicas como esta que façam desaparecer esse sofrimento (a dissonância entre o sexo genético e o “sexo social desejado” há-de manter-se sempre). E, sobretudo, não me parece que, para isso, se possa aceitar uma subversão do papel do legislador.

Estamos perante uma agenda de afirmação ideológica. Está em causa a afirmação da chamada ideologia do género (gender theory) e a sua tradução no plano legislativo. Parte esta teoria da distinção entre sexo e género. O sexo representa a condição natural e biológica da diferença física entre homem e mulher. O género representa uma construção histórico-cultural. O sexo é um fato empírico, real e objectivo que se nos impõe desde o nascimento. A identidade de género constrói-se através de escolhas psicológicas individuais, expectativas sociais e hábitos culturais, e independentemente dos dados naturais. Para estas teorias, o género assim concebido deve sobrepor-se ao sexo assim concebido. E como o género é uma construção social, este pode ser desconstruído e reconstruído.  As gender theories sustentam a irrelevância da diferença sexual na construção da identidade de género, e, por consequência, também a irrelevância dessa diferença na relações interpessoais, nas uniões conjugais e na constituição da família. Daqui surge a equiparação entre uniões heterossexuais e uniões homossexuais. Ao modelo da família heterossexual sucedem-se vários tipos de “família”, tantos quantas as preferências individuais e para além de qualquer “modelo” de referência.

Quando nos diplomas em apreço se alude ao “sexo social desejado” e se opta pela prevalência deste sobre o sexo biológico, a opção é ideológica e não puramente “humanitária”. É a ideologia de género que sustenta essa prevalência. E também se compreende a ligação entre esta questão e as do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Não é por acaso que surgem, em Portugal como em Espanha, uma na sequência da outra. É ilusório pensar que se trata apenas do fim de uma discriminação, ou do respeito pelas minorias. É um novo paradigma antropológico, uma verdadeira “revolução cultural” que se pretende impor desde cima, desde as instâncias do poder, e que não surge espontaneamente da sociedade civil e da mentalidade corrente. Pretende-se transformar através da política e do direito essa mentalidade. E o que está em causa não é um aspecto secundário, mas referências culturais fundamentais relativas à relevância da dualidade sexual. Admitir que a Lei sirva propósitos destes, numa pretensa engenharia social, revela tendências mais próprias de um Estado totalitário do que de um Estado respeitador da autonomia da sociedade civil.

Pretende-se, por outro lado, a instrumentalização da Lei ao serviço da prevalência da vontade subjectiva sobre a realidade objectiva. Dir-se-à que a transexualidade não é uma escolha arbitrária, que é também ela uma realidade psicológica que se impõe à própria pessoa. Poderá ser assim nalguma medida. No entanto, a vontade não deixa de ser determinante na definição do “sexo social desejado” a que os diplomas em apreço dão relevância. E os pressupostos da ideologia de género que lhe estão subjacentes, que sobrepõem o desejo a qualquer forma de heteronomia objectiva, deixam aberta a porta a situações de verdadeira arbitrariedade. E também esta é uma pretensão tendencialmente totalitária. O legislador constrói uma sua própria realidade contrária à realidade objectiva. Leis que consagram a ideologia de género desprezam por completo qualquer conceito de natureza ou lei natural. Por isso, derrubam a mais potente barreira à omnipotência do legislador, o «único baluarte válido» (na expressão de Bento XVI) contra o arbítrio deste.