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Um escritor singular (por Guilherme d?Oliveira Martins)
Shusaku Endo nasceu em Tóquio (1923) e viveu a infância na Manchúria, tendo-se tornado católico aos doze anos, por influência de sua mãe, com quem viveu em Kobe. O futuro escritor licenciou-se em Literatura Francesa, tendo estudado na Europa, em Lyon, com uma bolsa do Governo do Japão.

A sua obra é marcada pelas características especiais da sua identidade pessoal – pertença a uma religião minoritária e de influência exterior, o contacto com a doença e com a vida hospitalar. Shusako Endo é muitas vezes comparado a Graham Greene, que tinha uma grande admiração pela obra do romancista japonês. “Silêncio” é considerado o seu livro de maior originalidade e intensidade e mais significativo. “A Vida de Jesus” (1973), “O Samurai” (1980) e “Escândalo” (1986) constituem outras obras que permitiram a afirmação de Endo como grande romancista.

O romance “Silêncio” começa com uma informação dramática e inesperada: “A notícia chegou à Igreja de Roma. Enviado ao Japão pela Companhia de Jesus em Portugal, Cristóvão Ferreira submetido à tortura da fossa em Nagasáqui, apostatara. Missionário experiente, credor da maior estima, Cristóvão Ferreira já vivia no Japão há trinta e três anos. Ocupava aí o cargo de superior provincial e era tido como um exemplo inspirador tanto de clérigos como de leigos”… As cartas que, entretanto, mandara da região de Kamigata, onde se encontrava, revelavam uma grande determinação e coragem. Essas missivas não faziam suspeitar qualquer tendência no sentido da negação. É verdade que a partir de 1587, sob a orientação do regente Hideyoshi, a perseguição ao Cristianismo se tornou violenta e persistente, no entanto pouco se sabia sobre os procedimentos concretos adoptados para extirpar a influência cristã e ninguém estava em condições de prever o sentido e alcance das medidas e dos seus efeitos. “Silêncio” refere informações obtidas pelos Padres Sebastião Rodrigues e Francisco Garpe sobre o Padre Ferreira. Seguindo um ritmo que prende o leitor de princípio a fim, encontramos uma minuciosa narrativa que nos permite compreender o difícil conflito ético pessoal e íntimo que pôde ser usado e manipulado contra o Cristianismo por parte das autoridades do Japão no século XVII.

Cristóvão Ferreira é obrigado a defrontar-se com as consequências de uma opção tremenda em que a fé pessoal está ligada ao destino de muitos cristãos japoneses obrigados ao sacrifício supremo pelo qual ele se sente também responsável. O silêncio pesado domina o drama de quem tem de escolher entre o amor e a morte. A pressão é máxima, desde a culpa à dúvida, do silêncio ao amor. A apostasia concretizava-se pelo pisar da imagem de Cristo, representado num “fumie”. “Por amor deles, até o próprio Cristo teria apostatado”. E Ferreira dirá ao ouvido do novo apóstata: “Você vai agora realizar o mais doloroso acto de amor de que jamais alguém foi capaz”. E é como se fosse uma formalidade, ou como se o próprio Cristo dissesse: “Pisa-me! Eu vim ao mundo para ser pisado pelos homens! Carreguei com a cruz para partilhar da dor que vos é comum…”. E afinal: “Quando o padre assentou o pé no ‘fumie’ nascia a manhã. Ao longe, um galo cantou”…

«O problema da reconciliação do Catolicismo com o meu sangue japonês… ensinou-me uma coisa: que o homem japonês tem de absorver o Cristianismo sem o suporte de uma tradição, de uma história, de um legado, ou de uma sensibilidade cristãs”. Trata-se de um drama existencial, que é tratado magistralmente, devendo projectar-se para os dias de hoje e para uma tensão civilizacional, entre as tradições milenares do Japão, o culto dos antepassados e o sincretismo religioso (do xintoísmo e do budismo) há muito enraizado na cultura japonesa. Se Graham Greene falou sobretudo da tensão entre o Cristianismo e uma sociedade conformista no ocidente, o romancista japonês equaciona a contradição entre o judeo-cristianismo e o Japão. O Professor Yanaibara afirma: “os mártires ouviram a voz de Cristo, mas para Ferreira e Rodrigues essa voz não se fizera ouvir. Não significará isto que esses padres já não tinham fé desde o princípio?”. E vemos os apóstatas continuarem a viver, sob um nome budista. Shusaku Endo é um dos escritores mais lidos no Japão, mesmo depois da sua morte, e tal só é possível graças ao interesse manifestado pelos seus temas e pela sua qualidade.