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Afinal, até somos capazes (Hermínio Rico, sj.)

Apesar dos muitos “apesares”, estes são uns dias especiais. Dias em que o melhor de nós vem um bocadinho mais ao de cima, toma conta das aparências, pelo menos. Haverá muito equívoco e muita hipocrisia, muito aproveitamento comercialista, muita ostentação e desperdício, para já não falar no mau gosto... Não faltam coisas para criticar e à nossa tendência cínica não faltarão alvos. Nem podemos esquecer os pobres e solitários que apenas vêem quase tudo a passar-lhes ao lado, aumentando até o sentimento de exclusão. No entanto, no balanço final das coisas, não se pode negar que é o tempo em que mais apostamos no melhor que a vida tem.

Faz-se muita coisa que nos aproxima mais dos outros. Mesmo que contrariados ou com uma sinceridade menos que perfeita, procuram-se e dão-se prendas, estendem-se votos de boas-festas, celebra-se com os colegas de trabalho, faz-se um esforço para reunir as famílias, celebra-se a amizade, perde-se a vergonha de sermos todos outra vez um bocadinho crianças. E tudo isto obriga-nos a sair de nós mesmos, a relativizar as dificuldades e angústias próprias que tendíamos a achar que não deixavam margem para mais nada. Faz-nos cair na conta das bênçãos que temos, descobertas, às vezes, só quando começamos a partilhar um pouco delas com os outros. Até se ultrapassa a timidez de dizer aos outros que os apreciamos e que fazem a nossa vida muito melhor, mesmo que isso às vezes se possa diluir num sms a granel, despersonalizadamente mandado para uma lista inteira.

É o tempo da solidariedade, de ir à procura dos que mais precisam. Até somos capazes, brevemente que seja, de deixar o comodismo indiferente, de sair dos nossos enclaves de conforto e pensar nos que têm menos que nós. Mesmo olhando para isso tudo sem qualquer ingenuidade, algum bem acontece e será sempre melhor não desvalorizar esse bem-fazer, mesmo que se lute (e deve-se lutar) por uma forma muito mais sustentável e dignificadora de ajudar quem precisa.

Tudo somado, para quase todos, o tempo de Natal é um tempo melhor, em qualidade humana de vida, do que qualquer outra época do ano.

Afinal, até somos capazes. Somos capazes de tornar o mundo um bocado mais bonito, a vida um bocado menos dura e escura, o nosso viver com outros uma experiência mais gozosa. Somos capazes de apostar no lado bom das coisas e das pessoas, mesmo que com esforço e contrariados à partida. E tudo acontece por escolha, decisão e esforço nosso. Fazemos alguma diferença. Somos capazes de a fazer, temos esse poder em nós. Basta querer.

Então devia ser Natal todos os dias? Não. Porque rapidamente o “todo os dias” abafava o Natal. A questão não passa por criar um contexto exterior. Depende, quase na totalidade, antes, da nossa vontade interior. Não é uma envolvência exterior perfeita que me faz sentir e agir dum modo mais liberto, mais alegre, mais compassivo e mais solidário. É a minha escolha de me posicionar perante a vida nesse registo, e a decisão de actuar consoante, que faz com que o contexto à minha volta apareça com outro ar e mude realmente, a partir da minha acção, multiplicada depois nas respostas dos outros. Quando apostamos numa visão positiva das coisas, quando nos esforçamos por reforçar o bem e menos por sublinhar o mal, quando valorizamos os outros em vez de estarmos à procura das suas falhas ou a vê-los apenas como competidores, quando... etc., isso tem efeitos, vê-se. E o mundo fica diferente.

Mesmo sendo só uns poucos dias por ano, podemos aprender muito com este tempo especial de Natal, que, apesar de todos os “apesares”, nos mostra que, quando queremos, quando nos aplicamos a isso (até mesmo que um pouco contrariados), podemos fazer da nossa vida e da daqueles que estão à nossa volta uma coisa um bocadinho mais bonita, mais alegre, mais solidária... mais humana! É capaz de ter sido para isso que o Emanuel veio ter connosco – para nos ensinar a ser mais humanos.