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Transparência e segredo (Pedro Vaz Patto)

A divulgação de informação confidencial pela organização Wikileaks tem sido saudada como uma conquista do direito à informação e da exigência de transparência das instituições que é própria das democracias.

Li numa entrevista de um político de prestígio, a propósito desta questão, que os políticos deveriam habituar-se a actuar como se tudo aquilo que dissessem ou fizessem pudesse ser publicamente divulgado. Qualquer regime de segredo é visto com pouca simpatia e desconfiança na mentalidade corrente, especialmente na que encontra eco na comunicação social.

De entre a informação que veio a ser conhecida desta forma há um pouco de tudo: questões com real interesse público e que os cidadãos terão o direito de saber; assuntos de âmbito privado; afirmações ambíguas ou meras impressões subjectivas sujeitas à devida interpretação crítica.

De qualquer modo, nunca pode esquecer-se que os fins não justificam os meios. Por muito interesse que possa ter uma informação, não podem ultrapassar-se todas as barreiras legais e éticas para a obter. Admitir que neste caso se possam ultrapassar essas barreiras implica que tal seja possível em qualquer caso. E nem sempre se atende a todas as implicações que daqui decorem. Está em causa não apenas o regime do segredo de Estado, mas também a inviolabilidade da correspondência e das telecomunicações. Admitir a licitude desta prática significaria admitir a licitude da instalação de um microfone num gabinete de um alto magistrado ou escutas telefónicas não judicialmente autorizadas a membros do governo – para mencionar alguns casos cuja eventualidade tanta celeuma deu em tempos. Não deixa de ser curioso o protesto da organização Wikileaks perante a possibilidade de tribunais ordenarem a apreensão da sua própria documentação interna, por ela considerada confidencial (nesse âmbito, já não valeria a transparência…)

O direito à informação e à transparência são valores característicos da democracia, mas não são valores absolutos, a que todos os outros valores devam ser sacrificados. Nenhum sistema político poderá sobreviver sem regimes de segredo justificados pela necessidade de tutela desses outros valores. O que é característico da democracia é restringir esses regimes ao estritamente necessário, não eliminá-los.

Um conceituado jornalista (por isso, naturalmente sensível aos valores da transparência e do direito á informação) francês, Jean Lacouture, é autor de um livro, L´éloge du secret (Éditions Labor, 2005), onde afirma que um mundo se define «pela qualidade dos segredos que é capaz de preservar sem atentar contra a liberdade»; porque «a vida social é um terreno de uma dialéctica permanente entre a vontade de tudo saber e o reflexo humano de se preservar»; que «uma sociedade pode apodrecer devido a um excesso de sombra, mas também devido a um excesso de sobreexposição»; e que há o risco de que prevaleça um novo tipo de polícia «universal, omnipotente, omnisciente», um «olho enorme, inominável, implacável que nos vê, nus».

Um primeiro domínio que importa preservar desse «olho permanente» é o de um núcleo irredutível da intimidade individual, uma exigência da dignidade da pessoa humana. Alguma forma de pudor é um pilar da vida social e da civilização.

Mas mesmo no domínio da condução da coisa pública há âmbitos de segredo que têm de ser preservados. O segredo de justiça justifica-se pela necessidade de garantir a eficácia de uma investigação, assim como o bom-nome de uma pessoa inocente atingida por uma simples suspeita que não chega a ser confirmada. A segurança e o combate ao terrorismo exigem naturalmente um regime de segredo

E no âmbito da diplomacia, especialmente visada pela acção da Wikileaks, o segredo é, como também salientou o jornalista Jean Lacouture a este propósito, imprescindível na preparação de negociações de paz, sem o qual uma guerra pode nunca ter fim.

Nenhuma destas implicações pode ser esquecida quando se analisam as questões da transparência e do segredo numa democracia.