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Lições do Médio Oriente (por Pedro Vaz Patto)
As revoltas que, uma após uma como se de um jogo de dominó se tratasse, têm ocorrido em vários países árabes surpreenderam os observadores mais atentos e informados. Delas se podem colher algumas lições, sendo que algumas destas destroem ideias feitas e muito arreigadas até há pouco tempo.

Uma dessas lições é a de que foi posta em cheque uma diplomacia assente mais na lógica dos interesses e do pragmatismo (a chamada realpolitik) do que na coerência de valores éticos. Os países ocidentais apoiaram regimes ditatoriais cujas injustiças e atrocidades (nuns casos mais graves do que noutros) agora a todos escandalizam, mas a que durante muitos anos fecharam os olhos. Fizeram-no em nome de interesses comerciais ou da compreensível necessidade de assim conter a influência do extremismo islâmico. Essa política pode ter sido vantajosa numa perspectiva de curto prazo, mas não o foi numa perspectiva de mais vasto alcance, porque a confiança dos povos árabes nos governos que apoiaram tais regime saiu fortemente abalada, com o risco de essas revoltas assumirem agora conotações anti-ocidentais e de, portanto, facilitarem o jogo dos extremistas.

Parece que, mesmo assim, os perigos de que as revoltas venham a desembocar em regimes ainda mais opressores estará afastado. Isto porque outra das ideias feitas que estes acontecimentos estão a desfazer é a da incompatibilidade entre a cultura islâmica e os valores da democracia, dos direitos humanos e do Estado de Direito. Mais genericamente, em nome do relativismo moral cultural, foi-se difundindo a ideia de que os valores da democracia e da liberdade não eram universais, mas marcadamente ocidentais. Esses valores seriam estranhos a culturas como a chinesa, africana ou árabe e islâmica. E daí também o “fechar de olhos” a muitas violações de direitos humanos. Mas, afinal, os povos árabes demonstram que também conhecem as mesmas aspirações à liberdade e à participação do que os europeus. Não teve sucesso a tentativa de “exportar” a democracia através da imposição militar externa (veja-se o exemplo do Iraque), mas pode ter sucesso a construção da democracia a partir de dentro, com a espontaneidade e vitalidade da sociedade civil.

A universalidade dos valores democráticos também põe em cheque a tão discutida tese do “choque de civilizações”, para a qual o conflito entre valores antagónicos próprios de cada uma delas seria inevitável.

É certo que uma visão tradicional do Islão pode conflituar com os valores próprios do Estado de Direito, que não se reduzem ao respeito pelo sufrágio universal, mas implicam a limitação de qualquer poder e o respeito pela liberdade das minorias, nestas se incluindo a liberdade religiosa. Mas o que também está a ser desfeito é uma visão monolítica e inflexível do Islão. O desafio com que se deparam agora as sociedades islâmicas é, precisamente, o da conciliação entre os valores islâmicos (que ninguém parece querer pôr em causa, pois isso seria a completa perda de identidade cultural desses povos) e a modernidade. O sacerdote jesuíta egípcio Samir Khalil Samir, profundo conhecedor do Islão, tem salientado (designadamente nas agências zenit e asianews) a importância deste desafio. Um desafio que a Turquia, candidata à União Europeia, parece estar a enfrentar e que pode servir de modelo a outros países.

Não sabemos ainda que desfecho vão ter estas revoltas, que têm especificidades próprias de cada um dos países em causa. Um bom sintoma da autenticidade democrática das mudanças será o da sorte reservada às minorias cristãs nesses países, que nem sequer na Turquia gozam hoje da plenitude dos direitos de cidadania. Também o Pe. Samir salientou positivamente o facto de nas manifestações do Egipto se encontrarem lado a lado muçulmanos e cristãos com os seus símbolos, o crescente e a cruz (um clima que acontecimentos posteriores vieram ensombrar). A Recomendação da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa de 17 de Janeiro afirma que a presença das minorias cristãs no Médio Oriente é «um sinal de pluralismo e da existência de um ambiente propício ao desenvolvimento da democracia» e que o seu desaparecimento, como ponte que permite superar as barreiras das civilizações e como baluarte contra o extremismo, seria «catastrófico para o Islão».