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Em defesa da democracia (por Hermínio Rico, sj)
O juízo sobre a democracia que a avalia como o pior de todos os sistemas, com excepção de todos os outros experimentados e conhecidos, é abundantemente citado. Mas continua a ter toda a validade e transmite uma muita sábia adequação à realidade.

Se a primeira parte não contraria a justeza das muitas críticas que o desempenho concreto da democracia vai merecendo, a segunda alerta para o facto da enorme temeridade que é desvalorizá-la, pô-la em questão, ao ponto de considerar trocá-la por alternativas. Porque o resultado é muito perigoso, mostra a história à saciedade. Uma segunda afirmação famosa completa a primeira: a grande vantagem da democracia até nem está tanto na possibilidade que abre de se poder escolher o governo que se quer, mas na prerrogativa sempre aberta de atempadamente nos vermos livres dum governo que não queremos. Parece cinismo, mas toca no ponto crucial que a experiência histórica comprova. Todos os regimes são capazes de criar governos maus, mas só a democracia permite uma forma pacífica e eficiente de os substituir e, portanto, não fecha nunca a possibilidade de instituir um governo melhor.

E a democracia de que aqui se fala é a democracia sem qualificativo, a democracia representativa, baseada em eleições a que concorrem partidos políticos, em que se elegem presidentes ou parlamentos dos quais emanam governos. É a democracia que se baseia em eleições, que sustenta e é defendida por um Estado de direito, preserva a ordem pública e promove o debate que leve à formação de consensos ou acordos de cedências mútuas em que os interesses particulares são submetidos à prossecução do bem comum.

Esta democracia está desprestigiada, é verdade. Pela qualidade do desempenho de muitos eleitos, pelas próprias dificuldades do sistema representativo em lidar com a multiplicação de interesses corporativos e a força dos grupos de pressão. E também porque a governação se confronta com problemas cada vez mais complexos e os condicionamentos exteriores tornam a capacidade de manobra cada vez mais estreita. Mas a alternativa é mais democracia, uma democracia renovada e aprofundada, e nunca a ilusão envenenada de outro tipo de “democracia”. Este reforço tem que passar pelo robustecimento daqueles que são os pilares fundamentais da democracia: a participação e a responsabilidade. Porque a democracia dá trabalho e exige trabalho de todos. O caminho para tornar a democracia mais eficaz na resposta às questões da sociedade é um mais agudo sentido de responsabilidade de todos pelo bem comum que se concretize num empenho na busca de informação, na participação nas discussões sobre as melhores soluções e na assunção de responsabilidades concretas de serviço político.

Vivemos uma nova fase de ressurgimento de “alternativas”. Agora chama-se-lhe “democracia verdadeira”. A possibilidade de protestar e manifestar indignação, o recurso à capacidade mobilizadora das utopias, o próprio exercício da manifestação de massas, tudo são elementos positivos e com fecundidade democrática. As motivações e o conteúdo das acções podem ser louváveis, a mobilização de muita gente que vivia afastada da responsabilidade política é positiva. Mas há que ter cuidado em não se deixar manipular pelos inalteráveis defensores das “democracias populares”, “prec’s”, “poderes populares”, anarquistas e partidários da violência como meio para a subversão revolucionária. Mais tarde ou mais cedo, e melhor cedo que tarde, todas essas energias e inovações, para manterem o seu valor positivo, devem ser canalizadas (ou aproveitadas) para o aprofundamento e a actualização dos mecanismos da democracia representativa. Só assim se evitará a violência e a destruição que acabará por prejudicar mais precisamente aqueles que se começou por protestar defender.

Em tempos de crise, o populismo é uma grande tentação e uma tentação com grande poder de sedução. Pode ser o populismo messiânico e demagógico do líder carismático autoritário (talvez mais associado à direita), mas pode ser também o populismo basista, igualitário e libertário, de ataque às instituições, que se quer vender sempre como informal e espontâneo, da democracia “directa” (ou qualquer outro adjectivo), baseada no protesto de rua (mais típico da esquerda, com o Maio de 68 como perene referência mítica). A responsabilidade dos media é analisar e denunciar para lá das aparências: testar a coerência dos que questionam o sistema, investigando se não são os que mais usufruem (às vezes parasitariamente) do que vociferam combater; estar alerta para descobrir as manipulações de grupos na sombra; denunciar toda a demagogia que apenas destrói sem assumir responsabilidades por soluções construtivas. E os media deixam-se muito embalar pela aparência romântica e “pura” destas manifestações de “democracia-qualquer-coisa”...

Convém não esquecer que a democracia (representativa) é o pior dos sistemas, mas não há outro melhor!