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Estar pronto, é tudo! (pelo Pe. Alexandre Palma)

Recuemos ao primeiro quartel do século XIX. Viajemos até Inglaterra e mergulhemos no seu ambiente anglicano. Um jovem estudante de Oxford incomoda-se com o ateísmo juvenil de um seu irmão mais novo, de nome Charles. Resolve então intervir. Decide escrever-lhe uma carta.

Seria, apenas, o início de uma troca de correspondência que haveria de prolongar-se por dois anos. Procura, de imediato, argumentar sobre a existência de Deus. Agastado, porém, com o pouco eco que as suas palavras encontravam em Charles, dá-se conta da esterilidade dessa tentativa inicial. Então, a abordagem inflecte-se e a atenção passa a concentrar-se sobre a necessidade de promover no irmão a disposição para acolher um discurso que o conduza a Deus. Antes de usar a palavra, havia que preparar o ouvido. Percebera, no fundo, que a recusa da fé «surge de um defeito do coração, não do intelecto». Esta intuição viria a determinar não somente este singelo episódio entre irmãos, mas também a sua longa vida e extensa obra. Falo-vos de J.H. Newman (1801-1890), que mais tarde haveria de se converter ao catolicismo, haveria de ser nomeado cardeal e que foi, recentemente, beatificado.

Nesta história «doméstica» tendo a ver uma parábola daquilo que vamos sentindo ser o maior desafio que, como cristãos, hoje enfrentamos: a transmissão da fé. Ela narra isso mesmo, um problema na iniciação à fé. Nela se espelham, também, alguns dos fracassos de hoje. Como com frequência ocorre, desde logo na própria família. À luz desta experiência de J.H. Newman, questiono-me se nós hoje, no justo afã de comunicar a fé que nos anima, consideramos devidamente a necessidade de trabalhar as condições para que tal anúncio possa ser acolhido. Afinal, que seria da semente se antes não se tivesse ocupado da terra o agricultor?

Como defende gente bem mais sábia e entendida nestas coisas, talvez a grande dificuldade à comunicação da fé não esteja tanto no estilo da mensagem ou nos métodos do anúncio. Estará antes mesmo da sua transmissão. Como dizia T.S. Eliot, a crise religiosa contemporânea não consiste «simplesmente na incapacidade de acreditar em algumas coisas relativas a Deus que eram aceites pelos nossos antepassados, mas muito mais na incapacidade de experimentar as suas emoções sobre Deus e sobre o homem». Ou como afirma o teólogo M.P. Gallagher, vivemos «uma crise não tanto do credo, mas da cultura; não da fé em si própria, mas da capacidade de acreditar em algo para lá de si próprio». No nosso tempo, ter-se-á verificado o que o filósofo canadiano C. Taylor chamou «deslocamento da sensibilidade» e que será decisivo ter presente hoje quando pensamos a «transmissão da fé» ou a «nova evangelização».

Seria, contudo, errado ler nestas notas soltas um qualquer menosprezo pelo discurso da fé explícito, pensado, estruturado, organizado. Em momento algum este pode ser diminuído. Trata-se, antes, de chamar a atenção para algo que não me parece suficientemente valorizado: a necessidade de trabalhar os preâmbulos existenciais da fé, de desbloquear o que no Homem o dispõe para um encontro vivido com Deus. No presente momento cultural, a tal «deslocação da sensibilidade» impõe que se tenha presente a necessidade de recuperar certos dinamismos antropológicos que tornam possível uma iniciação à fé. Sem este trabalho, a disposição manter-se-á bloqueada a um caminho de encontro com Deus. Sem este cuidado prévio, a semente do Evangelho dificilmente encontrará onde e como estender as suas raízes. É que também a propósito da transmissão da fé se aplicará o dito de Hamlet: «Estar pronto, é tudo»!