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Dar a vida pelos seus amigos (por Pedro Vaz Patto)

No final do mês de Agosto fui surpreendido pela notícia da morte repentina de um amigo de há muitos anos.

Fernando Castro tinha sido um dos pioneiros do sector juvenil do Movimento dos Focolares em Portugal. Quando o conheci, na segunda metade dos anos setenta, liderava um grupo de jovens do Movimento empenhados naquilo a que se chamava “Operação África”, em favor do povo bangwa, uma tribo dos Camarões que já correra o risco de extinção pelo alastrar de doenças. Essa e outras actividades de empenho social pretendiam responder a um apelo que Chiara Lubich, a fundadora dos Focolares, lançara então aos jovens: «morrer pela sua gente», como fizera Jesus no seu tempo, guiados pela luz do Evangelho que afirma que «ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos». Interpretava-se este “dar a vida” não num sentido literal da morte física, mas como o doar todas as suas energias e esforços.

E o Fernando continuou, desde então e por muitos anos, a dar a vida nesse sentido, empenhando-se noutras actividades, em Portugal, no Perú, no País Basco e no Brasil. Chegou a dizer que não descansaria enquanto houvesse no mundo quem morresse por falta de assistência médica. De Chiara Lubich aprendera também a “táctica” de um amor que sabe “fazer-se um” com o próximo, procurando identificar-se plenamente com os seus sofrimentos, anseios e aspirações.

Com o seu entusiasmo, sabia envolver as instituições e arrastava muitos jovens. Muitos dos seus alunos de Coimbra, onde tinha leccionado há mais de vinte anos Religião e Moral, ficaram marcados pelo testemunho da sua entrega e da sua vida. Depois de ter percorrido o mundo, regressou a Coimbra há dois anos e voltou a marcar agora uma outra geração de jovens. Nesse espaço de tempo, criou, já não no âmbito dos Focolares, uma associação de cooperação para o desenvolvimento, a Promundo, e lançou projectos de cooperação no Haiti e na Guiné-Bissau. Um conhecedor da realidade deste país disse-me que se admirava como, num contexto em que abundam todo o tipo de obstáculos, chegavam ao número de quinze os projectos aí em curso nascidos da iniciativa do Fernando.

Em Agosto, deslocou-se à Guiné-Bissau para acompanhar esses projectos. Sendo diabético e dependente de insulina, estava precavido, mas a insulina que levou consigo degradou-se. Por toda a cidade de Bissau se procurou a insulina de que necessitava, mas não foi possível obtê-la a tempo. O Fernando deixou assim esta Terra, sem que ninguém o esperasse.

Desta vez, deu «a vida pela sua gente» de um modo literal e físico. O seu “fazer-se um” com o povo da Guiné-Bissau levou-o a identificar-se com ele até nas suas carências mais elementares. Isso mesmo, reconheceram com profunda comoção os muitos guineenses presentes no seu funeral.

Mas este episódio também não pode deixar de suscitar a eterna questão: como pode Deus, que é Amor, ter permitido que a vida do Fernando terminasse assim, quando ainda teria tanto para dar a tantos jovens e a tantos pobres?

Certamente que não foi esta uma vontade, mas uma permissão de Deus. Não faz de modo algum parte do desígnio de um Deus que é Pai de todos e quer que os recursos da sua criação cheguem a todos, que no século XXI haja um ponto da Terra onde se morre por falta de insulina. Como permissão, certamente que Deus, cujos desígnios são insondáveis, saberá retirar um bem deste mal e pretende dizer-nos alguma coisa com este acontecimento dramático.

Para o Fernando certamente chegou a hora da plena felicidade e da recompensa prometida pelo Evangelho a quem, por amor ao próximo, «dá um copo de água de água fresca»

A nós, que o conhecíamos e nos chocámos pela forma como partiu, Deus poderá querer dizer-nos que temos que cultivar, de muitos modos, a planta da semente que ele aqui lançou e que também nós, cada um à sua maneira, não devemos descansar porque no século XXI ainda há pontos desta Terra onde se morre por falta de assistência médica.