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Hermínio Rico, sj
Trabalho e descanso

Viver para trabalhar ou trabalhar para viver? Trabalhar o mínimo necessário para descansar o mais possível? Ou descansar para trabalhar melhor? O trabalho é uma maldição ou uma bênção? Um mal necessário, apenas? Muitas perguntas para procurar chegar ao fundo da nossa atitude fundamental face ao trabalho. Questão oportuna quando se discutem feriados e horários laborais. É importante visitar o valor essencial desta componente indispensável e essencial da existência humana que é o trabalho.

O trabalho tem má reputação. Facilmente nos queixamos do trabalho, suspiramos pelos fins de semana e pelas férias, exultamos quando alguma tarefa deixa inesperadamente de ser necessária. Há até uma espécie de jogo social que premeia os ditos humorísticos denegridores do trabalho. É claro que muito disto que se diz é superficial e não totalmente sincero, embora não deixe de marcar uma atitude cultural de desvalorização ou distorção do valor do trabalho.

Ora o trabalho é uma coisa séria de mais para se deixar apenas no reino das chistes e piadas, ou dos desabafos superficiais. O Papa João Paulo II publicou em 1981 uma encíclica sobre o trabalho, a Laborem Exercens. Trata-se de uma reflexão profunda que vai para além das estritas questões sociais e dos desenvolvimentos da doutrina social da Igreja, propondo uma meditação sobre a importância do trabalho para a dignidade da pessoa e sugerindo uma espiritualidade do trabalho. É um texto que merece a atenção cuidada de todos aqueles que buscam encontrar um sentido mais fundo para as suas ocupações profissionais. Trago para aqui algumas linhas do número 9:

o trabalho é um bem do homem. E se este bem traz em si a marca de um bonum arduum — «bem árduo» — para usar a terminologia de Santo Tomás de Aquino, isso não impede que, como tal ele seja um bem do homem. E mais, é não só um bem «útil» ou de que se pode usufruir, mas é um bem «digno», ou seja, que corresponde à dignidade do homem, um bem que exprime esta dignidade e que a aumenta. (...) O trabalho é um bem do homem — é um bem da sua humanidade — porque, mediante o trabalho, o homem não somente transforma a natureza, adaptando-a às suas próprias necessidades, mas também se realiza a si mesmo como homem e até, num certo sentido, «se torna mais homem».

Apesar de tudo o que facilmente dizemos sobre ele, o trabalho não é um mal. É um bem, um “bem árduo”, certamente, mas um bem. E um bem não apenas instrumental: ele não serve apenas como meio extrínseco (mais ou menos desagradável) para obter o necessário, o conveniente e o agradável; em si mesmo, o trabalho dignifica a pessoa, fá-la mais pessoa, colaboradora da criação e da construção de si mesma.

É neste sentido sobretudo que se deve dizer que o trabalho é para a pessoa e não a pessoa para o trabalho. O fim da pessoa não é alcançado exclusivamente, nem sobretudo, na fruição de bens e no lazer. O trabalho é uma dimensão fundamental da construção e da conservação da dignidade humana. A vivência do trabalho apenas como meio de obter um rendimento, podendo parecer que dá mais importância à pessoa que ao trabalho, evitando que esta se faça escrava do trabalho, leva, de facto, ao contrário. A mera instrumentalização do trabalho, valorizando apenas o salário (ou o subsídio) e não a acção humana de transformação do mundo e de colaboração trabalhador com a sociedade humana, traz consigo a instrumentalização da pessoa enquanto sujeito do trabalho. Se quem trabalha não vive o valor intrínseco do trabalho, então ele torna-se facilmente apenas uma exigência desumanizadora, um mecanismo que obriga a pessoa a passar a maior parte do seu tempo a sofrer o peso dumas tarefas para depois poder usufruir dos rendimentos desse esforço amargo. O tempo laboral ficaria uma espécie de exílio indispensável para poder ter os recursos para os pequenos oásis de satisfação de necessidades de consumo e de fruição do lazer, únicos espaços onde a pessoa realizaria o seu fim. O trabalho é para a pessoa, e não apenas como bem útil, porque intrinsecamente é uma dimensão essencial da dignidade da pessoa e assim deve ser promovido e vivido.

Esta perspectiva lança também outra luz sobre os imperativos éticos de diligência e honestidade. Trata-se não só deveres de justiça para quem paga o salário e para com a sociedade, mas também de deveres de fidelidade a si mesmo e à responsabilidade que cada um tem por se desenvolver duma forma integral e plenamente humana.