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Pedro Vaz Patto
A Igreja e os pecados dos seus filhos

Realizou-se em Fevereiro no Vaticano um simpósio sobre as consequências dos abusos sexuais de crianças e adolescentes perpetrados por sacerdotes, com o objectivo de «escutar, compreender e agir para curar e reabilitar as vítimas». Depois de vários representantes de igrejas locais terem descurado, de forma grave e censurável, o bem destas vítimas, este simpósio revela como a Igreja tem hoje uma postura diferente, de grande solicitude para com elas e de grande cuidado na prevenção deste crime. A ponto de haver quem tenha apontado esta atitude como um exemplo para muitas outras instituições que, de uma ou de outra forma, se deparam com este fenómeno. Porque os abusos sexuais de crianças e adolescentes não são, obviamente, e contra o que uma leitura apressada dos media talvez pudesse levar a crer, uma particularidade da Igreja católica: são uma chaga do quotidiano dos tribunais.

Particularmente impressionante e elucidativo foi o testemunho apresentado nesse simpósio (e divulgado na internet) de uma dessas vítimas, Marie Collins, acompanhado dos comentários da sua terapeuta, Sheila Hollins. Nele transparece como as sequelas de agressões sofridas na adolescência podem prolongar-se durante muitos anos, a ponto de afectar gravemente até a vida conjugal e familiar. Particularmente danosas são as situações em que a vítima não é reconhecida como tal, em que não é dado crédito à sua versão dos factos, e em que ela chega até a ser culpabilizada.

Deste testemunho podem retirar-se outras conclusões importantes.

A negação ou desvalorização destas situações por parte de responsáveis da Igreja, porventura com o intuito de preservar a reputação da instituição, levou a que – afirmou Marie Collins – «ao procurar salvar do escândalo», se tenha provocado «o maior dos escândalos, permitindo que se continuasse a praticar o mal e se destruísse a fé das vítimas». O bem da Igreja nunca poderá assentar no sacrifício da verdade («a verdade liberta – diz o Evangelho), da justiça e do bem das vítimas de crimes.

Por outro lado, como já o afirmara a propósito Bento XVI aquando da sua visita a Portugal, o perdão não dispensa a justiça (já o afirmara também João Paulo II na sua mensagem para o dia mundial da Paz de 2002: «o perdão não se opõe de modo algum à justiça, porque não consiste em diferir as legítimas exigências de reparação da ordem violada, mas visa sobretudo aquela plenitude de justiça que gera a tranquilidade da ordem, a qual é bem mais do que uma frágil e provisória cessação de hostilidades, porque consiste na cura em profundidade das feridas que sangram nos corações»). No seu testemunho, Marie Collins referiu que a confissão do crime por parte do seu agressor foi um passo importante no seu processo terapêutico, e que foi a partir dessa confissão que conseguiu perdoar.

O testemunho de Marie Collins também é elucidativo a respeito das consequências da prática destes crimes por sacerdotes na fé das vítimas. Impressionante a sua referência ao facto de «as mãos que a agrediram» serem as mesmas que «ofereciam o Santo Sacramento». O abuso do poder espiritual dos sacerdotes que praticaram os crimes, mas também a indiferença para com as vítimas por parte das autoridades que os protegeram, abalou em muitas destas, talvez nem sempre a fé em Deus, mas quase sempre a fé na Igreja. Como o simples conhecimento destes factos pode abalar a fé na Igreja de muitas pessoas, mesmo que não sejam vítimas.

Ao longo da História da Igreja, sempre nela a santidade conviveu com o pecado, e nunca os erros dos seus filhos, por mais graves que fossem, e até em períodos mais “negros” do que o actual (como o que conduziu ao cisma protestante, por exemplo) impediram que Deus continuasse, com o Seu Espírito, a assisti-la. Houve até quem (incluindo alguns santos), ao longo da História, com razão tenha concluindo que só a assistência de Deus, nunca as qualidades dos seus membros, explica que a Igreja tenha sobrevivido e resistido a séculos dos mais variados erros e pecados, o que não sucedeu a qualquer outra instituição humana. É também a assistência de Deus que, neste caso, leva hoje a Igreja a reconhecer humildemente os erros e pecados dos seus filhos, a pedir desculpa às vítimas e a fazer o que está ao seu alcance para reparar os danos por estas sofridos.