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Hermínio Rico, sj
Apóstolos ou Cristandade?

A Igreja é parte da sociedade e a sua acção é visível no mundo. Há obras que vão ficando, valores que consistentemente propõe e se afirmam mais ou menos nas culturas em que está presente. É inerente à sua identidade procurar influência sobre o todo social, uma influência que pode ir aumentando ou diminuindo, ser mais ou menos bem acolhida ou levantar mais ou menos oposição. Historicamente, as formas de influxo sobre a sociedade têm evoluído, têm até sofrido conversões radicais, depois de derivas menos consentâneas com a salvaguarda da dignidade da pessoa humana – fundamento, fim e caminho da sua proposta social. A Igreja, para ser fiel à sua missão, vive numa permanente busca dos meios mais adequados e tem constantemente necessidade de purificação das suas atitudes. Porque deseja sempre ser mais coerente com a sua mensagem e os valores que promove. Para que os meios de que lança mão não se arrisquem a contradizer os fins que quer propor.

Mas a Igreja não existe para si mesma. Muito mais do que uma instituição à procura de segurança, ou um clube que quer sempre crescer em aderentes, ou uma associação que garante benefícios, a Igreja é responsabilidade e missão. Está ao serviço do Reino de Deus e da humanidade. E o Reino de Deus, diz-nos o Evangelho, tem uma forma muito própria de se expandir e afirmar: é como um grão de mostarda, assente em pequenos começos; funciona como o fermento, ou como o sal, tanto mais efectivos quanto menos centram a atenção em si mesmos.

Como se mede, então, o sucesso da Igreja? Numa perspectiva enformada pelos ideais de Cristandade, dá-se muita importância ao número de aderentes, aposta-se que a influência mais eficaz sobre o mundo passa por a Igreja incorporar a sociedade cada vez mais dentro de si. Por aqui, corre-se o risco de começar a identificar o Reino de Deus com a Igreja e abre-se a porta às tentações de poder que buscam a docilidade de um rebanho disciplinado, obediente e uniforme que dá imagem triunfalista de força, ao mesmo tempo que é facilmente vigiado e dirigido. A Igreja, nesta perspectiva, é um ponto de chegada, trabalha para trazer as pessoas para si e aderir e estar dentro dá todas as garantias, especialmente para a eternidade.

Contudo, a Igreja não é ponto de chegada, mas de partida. Não é porto de ancoragem, é plataforma de missão, de envio. Não é segurança de todas as garantias, mas responsabilidade de serviço e testemunho. Esta é a perspectiva apostólica da Igreja, “apostólica”, isto é, enviada, a quem foi entregue a responsabilidade de uma missão no mundo.

Certamente que a Igreja se faz, em cada tempo e em cada lugar, de homens e mulheres concretos. E só pode continuar a servir a sua missão se conseguir entusiasmar sempre novos seguidores de Jesus Cristo. A messe é grande e os trabalhadores são sempre poucos. Mas a busca, pela Igreja, de novos membros para a Igreja é movida sobretudo por um desejo que o caminho de desenvolvimento humano, realização pessoal e felicidade, no compromisso pela construção dum mundo justo (o que constitui o seguimento de Jesus), seja aproveitado por outros, porque acredita que pode ser o melhor para cada um. A experiência inequívoca dos seus membros leva ao desejo de espalhar essa boa notícia e partilhar essa salvação encontrada. A Igreja alegra-se com a adesão de novos cristãos porque isso é radicalmente bom para as vidas dessas pessoas, mais, muito mais, do que porque é útil para a Igreja crescer no número do seus membros. É um exercício de responsabilidade pelo outro, não de interesse próprio. Claro que os níveis de empenho e participação serão diferentes, mas isso é inerente ao respeito pelos ritmos, a sensibilidade religiosa e a capacidade de compromisso de cada um.

Maiores números não garantem necessariamente mais eficácia apostólica na sua missão. Importa olhar, não para os números que dão tamanho à Igreja, mas para a pujança da vida no interior da Igreja e o que essa vida faz aos seus membros e o que a Igreja, através dos seus membros, está a fazer no mundo e pelo mundo. Não é a dimensão da Cristandade que é sinal de eficácia da missão, mas a força testemunhal dos cristãos, homens e mulheres permanentemente transformados e motores de transformação do mundo.

A Igreja não existe para si mesma e não é um ponto de chegada. É uma Igreja enviada, peregrina, é movimento. Por isso, os retratos estáticos são muito pouco significativos para avaliar a sua fidelidade ou o seu sucesso. O que é determinante é o dinamismo, a pujança do espírito (alimentado pelo Espírito) que se vive no seu interior e extravasa apostolicamente para o mundo, a capacidade de adaptação e criatividade, a credibilidade das atitudes e a capacidade de continuar a propor de forma atractiva e relevante a sua mensagem. Estas serão as sementes da eficácia no serviço fiel e coerente à missão recebida de Jesus Cristo e agora encarnada em cada situação histórica.