O cónego Carlos Paes, de 73 anos, celebra este ano o jubileu sacerdotal de 50 anos de ordenação. Foi formador de seminário e actualmente é pároco de São João de Deus, em Lisboa. Viveu os primeiros anos de padre em pleno Concílio Vaticano II e, ao Jornal VOZ DA VERDADE, testemunha a viragem na Igreja.
Que memórias guarda da sua infância na catequese?
Tudo se passava num quadro de cristandade. Fazia parte de uma cultura ambiente que havia. Eu ia normalmente à catequese mas, quer na escola primária quer na catequese mudei muito de professores e de catequistas. Por isso, não me fixei de maneira especial a ninguém. O meu prior era o padre Búzio, um homem animado. O meu pai era Vicentino, da Acção Católica, e a minha mãe era modista e trabalhava em casa. Só muito mais tarde é que ela acabou por fazer um Cursilho de Cristandade. Portanto, era uma família cristã que vivia numa cultura ambiente, de cristandade, que nos ia moldando.
Como foi o percurso que realizou no Seminário?
Foi um percurso pacífico. Eu era um miúdo um pouco tímido mas percebia que os padres gostavam de mim. Alguns até gostavam mais de mim do que eu gostava deles... Eu não era um aluno brilhante mas também não era mau aluno. No entanto, a minha sensibilidade cultural e espiritual não coincidia com o sistema de ensino que se praticava na altura. Eu estava mais desperto para uma abordagem estética da realidade e, portanto, um curso eminentemente cartesiano, escolástico, dogmático, matemático, não me favorecia! Onde eu me revia era em tudo o que tinha a ver com desenhos e com arte, e foi por esse caminho que eu me fui afirmando no Seminário. Eu tinha um bocadinho de habilidade para o desenho e era nesse campo que, então, eu me afirmava. As línguas, eu aprendia-as por música, pela sua sonoridade.
No entanto, hoje, parece ser um apaixonado pela teologia…
Sim, passei a sentir um grande entusiasmo a partir dum segundo curso de teologia que realizei. Comecei a contactar com outro tipo de teologia, de escrita teológica… era um outro discurso e isso foi uma verdadeira descoberta! A teologia que eu sabia tinha sido estudada em latim, e com esta descoberta encontrei-me do ponto de vista intelectual e espiritual, teológico... Foi de facto uma paixão que perdurou para o resto da minha formação.
Quando é que isso aconteceu?
Ao fim de 10 anos de prefeito, no Seminário de Almada, o senhor Cardeal pediu-me para passar para o Seminário dos Olivais. Nessa altura inscrevi-me na Universidade Católica e ia com os seminaristas para as aulas. Resolvi fazer um novo curso de teologia porque, dada a minha função de vice-reitor do seminário, interessava-me perceber a dinâmica intelectual daqueles alunos. Eles estavam a funcionar com uma teologia pós-conciliar e eu com uma teologia pré-conciliar. Embora fosse fazendo leituras, a formação sistemática com o segundo curso fez com que eu me reencontrasse! Interessava-me, sobretudo, a dimensão pastoral da teologia.
Durante o seu tempo de formação, e ainda antes da ordenação, houve algum momento em que tivesse sentido alguma hesitação?
Isso é muito curioso porque eu não sou nada dado a essas coisas! Eu faço as ‘curvas’ sempre em ângulos muito abertos. Por vezes, são curvas mais acentuadas ou menos acentuadas mas sempre num ângulo muito aberto. O que faz com que não houvesse solavancos na minha vida. Deixei de ter complexos por causa disso, por não ter acontecimentos chocantes ou impressionantes para contar: um retiro, uma peregrinação, uma pessoa em especial. A maturidade e a experiência de seminaristas mais velhos, chamados de vocações adultas, marcou-me em alguns aspectos, mais do que alguns directores espirituais ou prefeitos. Eu bebia em todas as fontes. A minha personalidade pastoral e a pessoa que eu sou deve-se exactamente a um contacto muito alargado e diversificado com pessoas com quem simpatizei mais e que simpatizavam comigo. Assim, ia-se criando uma sintonia e moldando uma personalidade.
Tendo entrado no seminário aos 11 anos, que modelos encontrou durante o seu percurso de formação?
É obvio que com 11 anos não se tem uma vocação! Tem-se um projecto vocacional, com alguns modelos de identificação. Lembro-me de um director espiritual que havia em Santarém que, para mim, era o ‘máximo’! O padre Oliveires, que era muito devoto do Sagrado Coração de Jesus, passava a vida a contar-nos maravilhas do Coração de Jesus e os milagres que Jesus fazia para os seus devotos. Aquele padre, para mim, era um modelo de identificação. Era um homem muito bem-disposto e sempre sorridente. Mas depois, fui encontrando várias pessoas pelo caminho, sem me fixar em nenhuma em especial. Mesmo no seminário distinguíamos entre os mestres e os professores. Tínhamos, sobretudo, mestres. Por trás de todos perfilava-se uma pessoa com quem eu nunca contactei directamente, mas que indubitavelmente marcou uma série de gerações e também a mim. Era monsenhor Pereira dos Reis. Foi um privilégio ter contactado com essa personalidade e com tudo aquilo que tinha de profético, nomeadamente em relação ao Concílio. Nós ouvíamos falar das coisas que o Concílio Vaticano II viria a fazer, ainda antes de se pensar em Concílio. Tudo isso foi importante e marcante.
Que memórias guarda do dia da sua ordenação, a 15 de Agosto de 1962?
Eu não estou ligado a datas. A minha vida mais do que marcada por datas é marcada por dinâmicas, por movimentos, por experiências continuadas, e isso é tão significativo que eu até me esqueço por vezes de algumas datas. Lembro-me que estava predisposto para a ordenação, sabia o que ia acontecer e acolhi isso com toda a tranquilidade. Naquele tempo talvez não se desse a mesma importância eclesial a esse acontecimento como hoje o vivemos. Eram muitos aqueles que eram ordenados e cabiam todos na Sé Patriarcal. Iam à celebração apenas os pais e um ou outro amigo mais próximo. Lembro-me de estar prostrado durante as Ladainhas mas, como digo, a minha vida não está ligada a datas.
Quando foi ordenado estávamos às portas do Concílio Vaticano II. Os seus primeiros anos de sacerdócio foram vividos em pleno Concílio. Como é que viveu esses primeiros tempos?
Nesse aspecto foram ricos, porque, de facto, os padres com quem eu convivia, alguns eram pessoas que me serviam de modelo e de estímulo. Alguns padres começaram a ir estudar para Roma, formar-se em Escritura e Dogmática. E eu com os meus colegas mais novos do Seminário de Almada, aproveitávamos a vinda de férias desses padres estudantes para fazer uma espécie de tertúlias. Pedíamos que nos falassem da teologia que estavam a aprender. Era o padre António Henrique que vinha de Escritura, era o padre José Policarpo que vinha de Dogmática. Era um deleite ouvi-los a abrir-nos horizontes.
Passados 50 anos do Concílio e tendo iniciado o seu ministério sacerdotal nessa época como vê, actualmente, a recepção do Concílio?
Parece que 50 anos é muito e, ao mesmo tempo é pouco, porque este Concílio marca, claramente, uma ruptura epistemológica. É a reconciliação da Igreja e do pensamento da Igreja com a modernidade e, portanto, adoptámos os mesmos códigos para nos podermos entender. Isso foi extraordinário, mas não foi feito sem alguma dificuldade! Eu, no seminário, fui experimentando essa viragem e sobretudo fui sentindo que ela era inevitável. Portanto, quando chegou o Concílio, foi como dar de beber a alguém que estava cheio de sede. Mas reconheço que não foi sem dificuldade que o povo de Deus, em geral, a começar pelos ministros ordenados, se foi inserindo nessa nova mentalidade. No decorrer dos anos tem havido alguns retrocessos e algumas resistências que, em determinado momento, ganham força e acabam por encontrar eco naqueles que esperaríamos que fossem os primeiros a dar continuidade e às vezes não são, porque as sensibilidades vão evoluindo, porque se cruzam outras correntes. Em termos litúrgicos não percebemos, ainda, toda a riqueza deste Concílio, porque não houve um estudo aprofundado da documentação. Esse é um desafio permanente na Igreja.
Considera que a celebração dos 50 anos do Concilio é uma oportunidade, também, para estudar estes documentos?
Sem dúvida alguma! Essa é a minha convicção, porque temos uma riqueza extraordinária e faz-me pena que, por vezes, as pessoas que ainda nem sequer aprofundaram todo esse manancial, já estejam a sonhar com outra coisa qualquer. Por vezes parece-me que há uma compreensão do mistério de Cristo que tem mais a ver com a tentação de uma espiritualidade desencarnada, que não nos traga muitos compromissos, que não nos peça envolvimentos difíceis, conversões muito radicais e, portanto, a própria celebração do mistério da fé acaba por surgir mais como alimento para uma espiritualidade, um pouco desencarnada, para uma satisfação de alguma necessidade e até de um certo sentimentalismo religioso. Mas o mistério de Cristo é outra coisa. Por exemplo, eu posso olhar para a Eucaristia em termos sacrificiais, sacerdotais, cultuais, rituais ou posso olhar para a Eucaristia como memorial da entrega do Senhor Jesus, como a Ceia que Ele nos deixou, para fazer esse memorial, como a construção de uma comunidade a partir da efusão de um Espírito que nos consolida, como um corpo eclesial, eucarístico, sacerdotal de Jesus Cristo. São duas perspectivas completamente diferentes. Não se excluem, mas quando vejo determinadas acentuações penso que estão a desviar-se do essencial.
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Perfil
Natural de Torres Novas, hoje Diocese de Santarém, o cónego Carlos Paes é o terceiro de nove filhos. Afilhado de um sacerdote, o pequeno Carlos desde criança que revelou a sua motivação para abraçar o sacerdócio. “Desde pequeno que eu dizia que queria ser padre”, conta ao Jornal VOZ DA VERDADE. “Mas depois, quando crescemos, na altura da escola primária o entusiasmo já não era tão grande. Mas o meu pai perguntou-me: ‘Sempre queres ir para o seminário?’. Eu disse: ‘Está bem, mas primeiro quero ver como é!’.
Aos 11 anos de idade deixa a sua terra para entrar no Seminário de Santarém. “Depois de três anos em Santarém, e outros três em Almada, fiz o resto do curso no Seminário dos Olivais, como era costume. Quando acabei o curso fui nomeado prefeito do Seminário de Almada, onde fui fazer equipa com aquele que viria a ser o futuro D. João Alves e D. Albino Cleto. Era uma equipa composta por 11 padres, todos pessoas notáveis que me ajudaram a crescer nos meus primeiros anos de padre”, observa.
Pároco de São João de Deus e deão do Cabido da Sé Patriarcal, o cónego Carlos Paes assinala no próximo dia 15 de Agosto, os 50 anos de ordenação. “São 50 primeiros anos, porque eu arranco cada ano pastoral como se fosse a primeira vez”, garante.
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