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Pedro Vaz Patto
Utopia ou ousadia?

A ministra francesa dos direitos da mulher anunciou o propósito do seu governo de abolir a prostituição. Trata-se de seguir o chamado “modelo sueco”, que vigora desde 1999 e assenta na punição do proxenetismo e também do cliente de serviços de prostituição; no apoio à reinserção social das mulheres prostitutas; e no esforço pedagógico nos sentido de essa prática passar a ser encarada como um atentado aos direitos humanos. Esse modelo é hoje também seguido pela Noruega (desde 2008) e pela Islândia (desde 2009).

A proposta não recolhe, como seria de esperar, um apoio unânime. Os argumentos contra este tipo de propostas são recorrentes: há que reconhecer a liberdade de a pessoa dispor do seu corpo; sempre haverá prostituição, que é um mal necessário até para evitar a violência sexual; mais vale regulá-la para reduzir os danos próprios da clandestinidade.

Mas também são significativas, e diversificadas, as vozes que apoiam esta proposta.

Uma delas vem de um portal dedicado à divulgação da visão de João Paulo II sobre o amor e a sexualidade (www.theologieducorps.fr). Apesar de ser também clara nesse portal a rejeição de outras propostas do governo socialista (como a legalização da eutanásia e do casamento e adopção por pares do mesmo sexo), nele se afirma o apoio claro a esta proposta. Invoca-se a dignidade da pessoa como um limite à liberdade; a liberdade não pode servir para renunciar à dignidade (como o reconheceu o Tribunal dos Direitos do Homem a propósito de um célebre jogo de feira que consiste em atirar uma pessoa anã como se fosse um qualquer objecto de arremesso). É de duvidosa autenticidade a expressão de liberdade de quem se prostitui (como de quem vende os seus próprios órgãos), na grande maioria dos casos sob pressão de graves dificuldades sócio-económicas. Encarar a prostituição como um mal necessário é fazer da mulher que se prostitui a vítima sacrificial da violência dos homens.

Uma proposta deste tipo também recebeu apoio da revista Famille Chrétienne (www.famillechretienne.fr, 7/5/2011). Em Itália, a associação Papa João XXIII, que, desde a sua fundação pelo Pe. Oreste Benzi, apoia a reinserção social e familiar de mulheres vítimas da prostituição, também se pronunciou a favor da proposta do governo francês (Avvenire, 10/7/2012).

Mas não deve pensar-se que apoios a este tipo de propostas vêm sobretudo de sectores católicos.

A associação Abolition 2012 reúne 45 movimentos, sobretudo feministas, mas também de apoio social às mulheres prostitutas (entre outros, Le Mouvement du Nid, de que é congénere o Ninho, activo em Portugal desde há várias décadas), e parlamentares de vários partidos, sobretudo de esquerda. No seu manifesto, esta associação denuncia a prostituição como uma forma de violência e de exploração, baseada no ancestral domínio do homem sobre a mulher e dos ricos sobre os pobres. O consentimento não é, na prostituição, livre, mas sujeito a esse domínio.

Nesta mesma linha, um outro manifesto Éradiquer la prostitution? Non, l´abolir (ver www.mediapart.fr, 7/7/2012), cuja primeira subscritora é a filósofa Sylvianne Agacinsky, considera a proposta como um avanço civilizacional, pois pretende pôr cobro a uma prática que é expressão de uma ordem arcaica que permite a imposição de uma relação sexual pela força do dinheiro, que garante ao homem com poder económico uma mulher à sua inteira disposição para satisfazer os seus desejos. Como não pode “roubar-se” um corpo, também não pode “vender-se” um corpo.

Apontam os críticos do sistema sueco o facto de ele não ter feito desaparecer a prostituição, que se mantém de forma clandestina e mais escondida. Mas também nos países que legalizaram a prostituição a clandestinidade não desapareceu (além do mais, para evitar o pagamento de impostos ou manter o anonimato). Os relatórios do governo sueco atestam uma diminuição da prostituição para cerca de metade, o êxito dos programas de reinserção social e o desvio das redes de tráfico para outros países. Será utópico pensar que a prostituição será abolida apenas por causa da punição dos clientes, sem o apoio à reinserção social e sem a transformação de mentalidades. O sistema penal nunca fez, por si só, desaparecer a prática de crimes (já é bom que a contenha dentro de limites aceitáveis). Mas estas leis apontam para o caminho certo, um caminho semelhante ao que levou à abolição da escravatura, prática que durante muito tempos também foi vista como inevitável.

 

na foto: Najat Vallaud-Belkacem, Ministra dos Direitos das Mulheres, em França