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Pedro Vaz Patto
Só a liberdade é sagrada?

A propósito dos protestos (pacíficos e violentos) contra a difusão de um filme profundamente ofensivo para com a figura de Maomé (e como já sucedera há alguns anos com a publicação de caricaturas por um jornal dinamarquês), a mais frequente reacção de responsáveis políticos e formadores de opinião dos países ocidentais tem sido a de proclamar que a liberdade de expressão em que assentam as sociedades livres e democráticas não pode ser limitada, nem mesmo nestes casos. Parece que nestes países e nessas sociedades a liberdade de expressão é um valor absoluto, que nelas nada há de intocável e sagrado, senão essa mesma liberdade de expressão.

Não é essa, porém, a visão do mundo islâmico, e não só das suas facções mais extremistas. Vários governos de países islâmicos vêm encetando esforços para que no âmbito do direito internacional se consagre a proibição daquilo a que chamam a “difamação das religiões”, e deparam-se com a oposição dos governos dos países ocidentais. Esta oposição parece revelar um verdadeiro fosso cultural (um sinal do chamado “choque de civilizações”), e perante esse fosso torna-se muito mais difícil a convivência tolerante em sociedades multiculturais, como são cada vez mais as nossas. O que para uns é expressão inatacável de liberdade, para outros será sentido como a mais grave das agressões, porque atinge os mais preciosos dos seus valores.

Mas será que a liberdade de expressão é mesmo um valor absoluto e ilimitado nas sociedades livres e democráticas?

Afirmou Bento XVI na sua recente viagem ao Líbano que «a liberdade humana é sempre uma liberdade compartilhada, que pode crescer apenas na partilha, na solidariedade, no viver juntos, com determinadas regras.»

Muitas ordens jurídicas liberais proíbem e punem a palavra que se traduz no incitamento à violência e à prática de crimes. As palavras podem matar tanto como as armas de fogo. Vem à memória o exemplo do genocídio ocorrido no Ruanda, em que os incitamentos criminosos de uma rádio contribuíram decisivamente para a grande dimensão da tragédia. Também cada vez mais se tem reforçado a legislação contra o incitamento à discriminação racial e contra as injúrias em função da raça. Muitas legislações punem como crimes a injúria e a difamação, que compreendem a imputação falsa ou injustificada de factos desonrosos e a formulação de juízos atentatórios da honra e dignidade das pessoas. Há quem, compreensivelmente, se sinta mais agredido com uma injúria do que com uma agressão física.

O que é próprio das sociedades livres e democráticas é o livre debate de ideias. A crítica da religião islâmica, como a da religião cristã ou das religiões em geral, não pode deixar de ser livre. Nem há que temer esse debate e essa crítica, porque às ideias pode sempre responder-se com outras ideias, e a Verdade impõe-se por si, pela luz e força que lhe são intrínsecas. Quando governos de países islâmicos pretendem proibir a “difamação das religiões”, teme-se que pretendam proibir essa livre crítica. Não podemos ignorar as inaceitáveis perseguições (aos cristãos, e não só) que têm sido praticadas à sombra das chamadas “leis contra a blasfémia”. E também houve protestos contra o discurso de Bento XVI em Ratisbona, (mal) interpretado como uma crítica à religião islâmica.

Também é própria das sociedades livres e democráticas a livre crítica das acções e comportamentos políticos, mas tal não significa que a honra e dignidade pessoais dos atores políticos possa ser espezinhada.

Do mesmo modo, é diferente da crítica motivada às religiões a falta de respeito pelos símbolos e figuras tidos por sagrados, o achincalhar gratuito desses símbolos e figuras, a ofensa aos sentimentos religiosos das pessoas (seja qual for a religião em causa). Há quem, compreensivelmente, se sinta mais gravemente ofendido desta forma do que de qualquer outra, porque se sente atingido no que tem de mais precioso, mais precioso do que a sua saúde e do que a sua honra e dignidade pessoais. É por isso que o nosso Código Penal prevê crimes contra os sentimentos religiosos das pessoas.

Às ideias pode responder-se com outras ideias e assim se gera o diálogo e o debate. Os insultos já saem fora do diálogo e do debate racional. Surge sempre a tentação de responder aos insultos com outros insultos, e assim se gera a violência verbal, que nada tem a ver com o debate que é próprio de sociedades livres e democráticas.

É à luz destes princípios (da distinção entre livre crítica e ofensa aos sentimentos religiosos das pessoas) que se criam as melhores condições para a convivência tolerante em sociedades multiculturais que respeitam as religiões, cristã (também ela muitas vezes agredida de forma desrespeitosa), islâmica ou outra.