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Pedro Vaz Patto
Estado social e caridade

A polémica desencadeada na sequência de umas declarações da presidente do Banco Alimentar contra a Fome assumiu foros de autêntica controversa ideológica. A esse propósito, houve quem contrapusesse o Estado social àquilo a que depreciativamente apelidava de “caridade”. Será bom que a meritória ação dessa instituição (cada vez mais necessária), cujo apoio vem congregando pessoas de todos os quadrantes, não seja envolvida nessa controversa ideológica. Mas a polémica também pode ser ocasião para esclarecer alguns conceitos e ideias.

Um primeiro é o conceito de “caridade”, que pode ser considerada a virtude cristã por excelência e que não pode ser desvirtuada ou caricaturada. A caridade é o amor oblativo, de quem se doa a si próprio sem reservas, até ao ponto de dar a vida, como fez Jesus Cristo. É o amor de quem dá tudo (como a viúva pobre do Evangelho), não um pouco do que lhe sobra (como os fariseus). Afirma Bento XVI no início da sua encíclica Caritas in Veritate que a caridade na verdade «é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira»; «é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz»; «é o dom maior que Deus concedeu aos homens; é sua promessa e nossa esperança».

A caridade não dispensa a justiça, pressupõe-na (porque não tem sentido dar ao outro benevolamente do que é meu, sem antes lhe dar o que lhe é devido por justiça). Mas o amor continuará sempre a ser necessário, mesmo na sociedade mais justa, como também afirma Bento XVI na encíclica Deus Caritas Est (n. 28): «Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem. Sempre haverá sofrimento que necessita de consolação e ajuda. Haverá sempre solidão. Existirão sempre também situações de necessidade material, para as quais é indispensável uma ajuda na linha de um amor concreto ao próximo. (…) A afirmação de que as estruturas justas tornariam supérfluas as obras de caridade esconde, de facto, uma concepção materialista do homem: o preconceito segundo o qual o homem viveria “só de pão” (Mt 4, 4; cf. Dt 8, 3) — convicção que humilha o homem e ignora precisamente aquilo que é mais especificamente humano.»

Certamente as pessoas que voluntariamente dão o melhor de si na ação dos bancos alimentares são movidas pela caridade assim entendida, como o são muitas pessoas que de outras formas lutam contra a pobreza, incluindo na sua dimensão estrutural e política.

É errado contrapor as funções do Estado social a ações espontâneas da sociedade civil como a dos bancos alimentares.

É certo que ações como essas não atacam as causas estruturais da pobreza (pensões e salários reduzidos, desemprego, etc.). Enquanto se mantiverem tais causas, a sociedade continuará a gerar pobreza.

Mas há necessidades elementares urgentes (a alimentação, designadamente) que não podem esperar. Enquanto se discute a reforma do sistema económico vigente, ou se procura uma alternativa, há pessoas com fome que não podem esperar. Aliás, teriam que “esperar sentados”, porque não é fácil encontrar soluções, e até hoje não se encontrou nenhuma perfeita.

É verdade que importa não só “dar o peixe”, mas “ensinar a pescar”. Mas também importa “dar o peixe” quando a pessoa não tem capacidade para aprender, enquanto não aprendeu e quando o que aprendeu não serve para obter emprego. 

Por outro lado, a crise financeira do Estado social exige que este actue guiado pelo princípio da subsidiariedade, isto é, que não se substitua a iniciativas espontâneas de sociedade civil como estas. Essas iniciativas são reveladoras das melhores energias da sociedade civil, que não podem ser desperdiçadas, devem ser fomentadas e apoiadas.

É verdade que a esmola pode ser uma forma fácil de tranquilizar as consciências dos ricos que não abdicam de um estilo de vida centrado sobre si mesmos. Mas a simples ação ou crítica políticas também podem ser um fácil álibi para, tranquilamente, deixar de fazer (com o pretexto de que essa é tarefa do Estado) aquilo que cada um de nós pode fazer no sentido da partilha concreta com quem está ao nosso lado.