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Guilherme d'Oliveira Martins
Franciscanismo
Santo António de Lisboa (c. 1195-1231), formado em Santa Cruz de Coimbra pela “escola” de S. Teotónio, foi o primeiro Doutor da Igreja da Ordem dos Frades Menores e simboliza no triângulo bem conhecido - teólogo de cátedra, pregador de púlpito e missionário no mundo – o espírito de abertura e de compreensão, que está presente na identificação da nossa cultura. O certo é que Fernando Martins, Frei António, foi um verdadeiro esteio da Ordem de S. Francisco, entrando no grupo excecional de S. Boaventura, Duns Escoto, Raimundo Lúlio ou Rogério Bacon. Lembremos que foi Lúlio quem primeiro sugeriu o plano de tornear a África, para chegar às Índias. E não disse Jaime Cortesão que o franciscanismo construiu a mística dos Descobrimentos – “eliminando a contradição inibitória que existia entre as necessidades económicas e os postulados da religião”?

Hoje, o Papa Francisco deu uma nova projeção ao «poverello», que teve influência decisiva na construção da nossa cultura. Basta ver como a literatura portuguesa se alimentou desse “poderoso sopro espiritual”, segundo António Quadros. E se nos gerámos nessa convergência rica e singularíssima entre o Atlântico e o Mediterrâneo, não podemos esquecer a simbiose mística cantada por Frei Agostinho da Cruz - “Daqui mais saudoso o sol se parte; / Daqui muito mais claro, mais dourado. / Pelos montes, nascendo, se reparte”. E quando partimos em busca do incerto e do misterioso, fizemo-lo nesse espírito. Do que se tratava era de ligar o “saber de experiências feito” aos sentimentos, numa lírica “repassada de ternura e piedade”. Leia-se Antero de Quental para o compreendermos. E Jaime Magalhães de Lima fala da “glorificação da terra e da alma tal qual a santidade e a poesia a conceberam em um fenómeno de exaltação que foi um relâmpago de luz incomparável sobre todas as dúvidas que nos atormentam a felicidade”.

Poderemos ainda citar Camões pelo espírito de que está imbuída a sua obra épica e lírica, perpassada por uma atitude voluntariosa, amorável e terna. E podemos aludir ainda a Francisco de Portugal, Jerónimo Baía, Francisco Manuel de Melo e ao Padre António Vieira. Vieira proclama: “Negou-se de tal maneira a si mesmo, que deixou totalmente de ser o que dantes era. Pois se Francisco não era Francisco, que era? Era Cristo”. E, em chegando ao século XIX, Garrett, nas “Viagens”, e Herculano, em “A Harpa do Crente”, invocam esse mesmo espírito. E podemos ainda lembrar Eça de Queirós, na memória de Frei Genebro, Teixeira de Pascoaes, em “Maranus”: “S. Francisco de Assis falava outrora, / Aos animais, às flores, triste e só…”, ou Afonso Lopes Vieira: “O povo da cercania / vai fazer a montaria / à fera que o assaltava / e os gados lhe perseguia!”. E até Fernando Pessoa nos fala do santo de Assis ao escrever, à volta de 1912, “Prece”: “Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim”…

O franciscanismo está no código genético da cultura portuguesa – a partir da consideração do primado da pessoa humana, da valorização da hospitalidade e da entreajuda comunitária e do espírito de disponibilidade para o que é diferente. E, como salientou, Agostinho da Silva, o mundo que o português criou corresponde a uma síntese onde tudo se encontra: o sonho, a descoberta, a aventura, a cordialidade, o desafio, a incerteza, a disponibilidade, o diálogo, a diferença, a natureza… E se nos lembrarmos do prolóquio popular, que persiste nos Açores, “a cada canto seu Espírito Santo”, fácil nos é de perceber esta influência como sinal emancipador. E o certo é que esse culto foi obra de franciscanos, para quem “Cristo era irmão dos humildes; e a Virgem, a Mãe misericordiosa dos homens”.