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O tempo nas palavras
“Encontrou no Templo os vendedores de bois, de ovelhas

e de pombas e os cambistas abancados”. Jo. 2. 14.

 

Georges Bernanos (1888-1948), o autor de “Journal d’Un Curé de Campagne”, transposto para o cinema em 1951 por Robert Bresson, com Claude Laydu na pele do padre de Ambricourt, escreveu numa carta enviada a um amigo brasileiro: “Ah! Ignoro se a vida me ama, mas o Bom Deus fez-me a graça de amar muito a vida, a vida que os imbecis percorrem a toda a velocidade, sem ter tempo para a olhar, a vida cheia de segredos admiráveis que são postos à disposição de todos, sem que ninguém peça” (1942).

O texto é eloquente e encerra uma autêntica teologia da ternura, perante os segredos admiráveis da natureza e da vida. Bernanos é um dos grandes romancistas do século XX e conhecem-se as suas facetas paradoxais, de um grande sentido de humanidade e de uma capacidade extraordinária de se indignar com a injustiça e a indiferença. Para si, a vida e a humanidade eram demasiado importantes para que pudesse ficar indiferente perante o egoísmo e a cegueira relativamente aos outros. A sua obra é, por isso, um permanente apelo à coragem e ao inconformismo. Na guerra de Espanha escreveu um manifesto duríssimo, “Os Grandes Cemitérios sob a Lua” (1938), onde denunciava a violência e a hipocrisia nos dois lados da trágica contenda. No seu exílio brasileiro escreveu, em 1943, “Monsieur Ouine”, retrato do nosso tempo, onde a personagem principal alimenta a ambiguidade do sim (Oui) e do não (Non, ne). Ouine é uma autêntica criatura infernal, porque o amor morreu no seu coração, já que nem sequer é capaz de se amar. Para Bernanos isso é o inferno, essa trágica incapacidade de amar e de compreender os outros. No entanto, como é afirmado muitas vezes nos seus romances, em especial pelo cura de Ambricourt, “tudo é Graça”. O romancista procura, por isso, a capacidade de “ver”, de estar atento e desperto para tudo o que o rodeia. Como disse o Padre José Tolentino Mendonça na missa de António Alçada Baptista, trata-se, no fundo, de perceber a importância da “Graça original”, com muito mais força do que o “pecado original”. E, quando lemos nas Escrituras o episódio da expulsão dos vendilhões do Templo, temos de nos lembrar de tudo isto. Afinal, esse gesto purificador tem menos a ver com os comerciantes que ali estavam do que com a atitude geral de confundir tudo e de esquecer que a prefiguração do mal e da injustiça tem a ver com a falta de amor e com a desatenção relativamente aos outros.