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Pedro Vaz Patto
Guerra e paz

No momento em que escrevo, parece afastada a probabilidade de uma intervenção armada externa na Síria, contra a qual se insurgiu o Papa Francisco, num apelo a que aderiram católicos de todo o mundo, cristãos de outras denominações, fiéis de outras religiões, políticos de vários quadrantes, crentes e não crentes. A guerra civil na Síria está longe do fim, mas alguma esperança de solução diplomática do conflito parece menos longínqua, o que certamente também será devido a esta ação do Papa Francisco.

Vêm à memória os denodados esforços de João Paulo II para evitar a guerra no Iraque, em 2003.

Hoje, como então, a opinião pública internacional foi sensível ao apelo dos Papas. Mas não o foram da mesma forma, hoje como então, os políticos com o poder de tomar decisões, de vários quadrantes e mesmo os que afirmam professar a fé cristã. «Compreendo e respeito os apelos do Papa, mas tenho as minhas responsabilidades políticas» - recordo bem estas palavras de um governante a propósito de uma destas situações. Aceitam esses governantes que esteja no papel do Papa fazer tais apelos, mas invocam as suas responsabilidades de políticos, confrontados com o realismo dos factos com que se deparam, para tomar decisões noutro plano.

Estaríamos, assim, perante um aparentemente insuperável dualismo: de um lado, a chamada ética de convicção (que atende à pureza dos princípios), de outro a chamada ética de responsabilidade (que atende às consequências concretas das decisões); de um lado, a audácia e o idealismo dos profetas, de outro, a prudência e o realismo dos políticos.

Mas será tal dualismo correto e insuperável? Estarão apelos à paz como os referidos condenados ao fracasso, como uma voz que clama no deserto? E, por outro lado, deverão os cristãos deixar de atuar como tais quando têm que tomar decisões políticas complexas e difíceis (ou também na vida empresarial ou profissional)?

Uma ética (cristã ou humanista) coerente rejeita este dualismo.

São conhecidos os apertados critérios de legitimidade moral de uma guerra nos tempos de hoje, de acordo com a doutrina da Igreja Católica, que encontram reflexos na Carta das Nações Unidas e nas demais normas do direito internacional. Esses critérios são de grande exigência e deveriam tornar o recurso à guerra claramente excecional, um mal a evitar a todo o custo. Entre eles, está o de que a guerra não provoque mais danos do que aqueles que se pretende evitar.

Não se atendeu a este critério (e também não a outros) quando foi decidida a guerra no Iraque. Dez anos depois, a opinião pública de vários países parece ter colhido a lição dessa guerra, que deixou sequelas que ainda hoje se sentem e questões por resolver ainda hoje. Dez anos depois, não será difícil reconhecer que os governantes que decidiram a guerra do Iraque teriam feito melhor se atendessem aos apelos então lançados com insistência por João Paulo II.

Hoje, a projetada intervenção armada externa na Síria viria exacerbar (porque à violência tende a responder-se com mais violência) um conflito que já provocou centenas de milhares de mortos e milhões de refugiados. Poucos acreditam em intervenções “cirúrgicas” sem danos para civis inocentes. Haveria o risco de alargamento internacional do conflito (até que ponto é difícil prever). O simples anúncio da possibilidade de uma intervenção militar externa provocou ainda mais refugiados. Uma intervenção em prol do povo sírio inocente acabaria, assim, por lhe causar ainda mais danos.

Para além disso, há questões políticas que não podem ser ignoradas. A Síria é um complexo mosaico de comunidades identificadas pela cultura e pela religião, onde as minorias (entre elas, a dos cristãos, que são o elo politicamente mais isolado e fraco) temem ser vítimas do extremismo das maiorias (vendo o que se está a passar no Iraque e no Egito).

O exemplo do Iraque revela que não basta ganhar militarmente para construir um país pacificado. A guerra deixa por resolver muitas questões políticas e cria novas, porque acentua os ódios e a sede de vingança.

Os apelos à paz do Papa Francisco hoje, como há dez anos os apelos do Papa João Paulo II, não são fruto de uma visão ingénua e utópica, São fruto, por um lado, do conhecimento direto dos dramas vividos pelas populações afetadas (o que falta a quem decide a guerra em gabinetes). E são fruto de um juízo moral compatível com um grande realismo político. Não é ilusório pensar que a «guerra é uma aventura sem retorno»; ilusório é pensar, simplisticamente, que ela tudo resolve.