Jornal Voz da Verdade

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20.04.2014

Lisboa |

6� Catequese Quaresmal

�A pior descrimina��o de que sofrem os pobres � a falta de cuidado espiritual� (Evangelii Gaudium, 200)

Concluindo as catequeses quaresmais, que este ano sublinharam algumas passagens do quarto cap�tulo da exorta��o apost�lica Evangelii Guadium, do Papa Francisco, sobre “a dimens�o social da evangeliza��o”, detenho-me hoje no seu n�mero 200, onde afirma que �a pior discrimina��o de que sofrem os pobres � a falta de cuidado espiritual�.

Pode parecer estranha a injun��o… Na verdade, o Papa n�o diz apenas que estamos mal quando descuidamos os pobres. Creio que qualquer um de n�s o dir�, crentes ou n�o crentes, na primeir�ssima base duma humanidade comum, que exige que olhemos uns pelos outros, especialmente por quem mais precisa de ser apoiado. Com maior ou menor coer�ncia pr�tica, poucos nos atrever�amos a dizer o contr�rio, ou menos do que isso.

Mas o Papa diz mais e quase outra coisa. Diz e declara que entre tantas descrimina��es que os pobres podem sofrer – e tantas vezes sofrem, de facto - a pior � a falta de cuidado espiritual.

- Que ordem de raz�es leva o Papa a falar assim? Ent�o, a primeir�ssima urg�ncia e a necessidade irrecus�vel que a pobreza de tantos hoje apresenta n�o t�m a ver com as condi��es materiais de vida e a pr�pria subsist�ncia at�?

Na ordem da a��o imediata, certamente que � assim. Na enc�clica Deus caritas est, not�vel documento do Papa Bento XVI, define-se a caridade crist� com essa insofism�vel prioridade. Vem no seu n�mero 31 – um daqueles trechos que dever�amos saber de cor e aprender na primeira catequese -, referindo �os elementos constitutivos que formam a ess�ncia da caridade crist� e eclesial�.

A� escreve o Papa Ratzinger: �Segundo o modelo oferecido pela par�bola do Bom Samaritano, a caridade crist� � simplesmente, em primeiro lugar, a resposta �quilo que, numa determinada situa��o, constitui a necessidade imediata: os famintos devem ser saciados, os nus vestidos, os doentes tratados para se curarem, os presos visitados, etc�. De seguida, juntam-se outros dois elementos, ou seja, que �a atividade caritativa crist� deve ser independente de partidos e ideologias�, pois n�o sendo ideologia nem estrat�gia, � pura e simplesmente �atualiza��o, aqui e agora, daquele amor de que o ser humano sempre tem necessidade�; e tamb�m n�o deve ser exercida �em fun��o daquilo que hoje � indicado como proselitismo, pois o amor � gratuito; n�o e realizado para alcan�ar outros fins�.

Imediata, independente e gratuita: assim se h� de caraterizar a atitude crist� aut�ntica e a a��o sociocaritativa. Mas � no conjunto que tais carater�sticas valem, da primeira � �ltima, porque todas se dirigem ao outro como pessoa, irredut�vel sempre a qualquer quantifica��o ou instrumentaliza��o – mesmo com aquelas “boas inten��es” que n�o enchem propriamente o c�u…

O outro – e o outro necessitado, em primeiro lugar e como op��o preferencial – � sempre e em qualquer circunst�ncia que o atinja uma pessoa, isto �, realidade espiritual, enquanto ser que, materializado embora, ultrapassa a quantidade que tenha pela qualidade que �. Como ser humano, com direitos universalmente reconhecidos, ainda que frequentemente descurados; e, para n�s os crentes, como criatura divina, que vale em cada um o pre�o infinito com que Cristo o redimiu.

� essa condi��o espiritual de cada ser humano que exige um tratamento equivalente e que come�a exatamente por reconhec�-lo assim. Da� que a aten��o aos pobres tenha de come�ar por reconhec�-los como pessoas, e se entenda a frase do Papa Francisco, quando lamenta: �a pior descrimina��o de que sofrem os pobres � a falta de cuidado espiritual�.

Mas, tomando o n�mero 200 da Evangelii Gaudium no seu conjunto, detalhemo-lo em tr�s poss�veis “al�neas”. A primeira, que j� indiquei, � essa mesma, de constatar negativamente a falta de aten��o � densidade espiritual dos pobres. O Papa chama-lhe “descrimina��o” e dirige-se diretamente aos cat�licos, como que em exame de consci�ncia, que nenhum de n�s deixar� de fazer…

Seguidamente, o Papa sublinha que �a imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura � f� e �necessidade de Deus�, requerendo da nossa parte a transmiss�o da b�n��o, da amizade e da palavra divinas, bem como a celebra��o sacramental e a possibilita��o de crescimento na f�. Tudo isso que nos fez t�o bem a n�s – a f� e o crescimento na f� – � o que devemos aos outros, especialmente aos que mais precisam, no corpo ou no esp�rito, sendo que, enquanto pessoas, as necessidades podem come�ar num ou noutro, mas s�o sempre incind�veis. O cl�ssico ideal de “alma s� em corpo s�o” teve na atua��o de Cristo, Verbo incarnado, a mais alta das concretiza��es, alimentando a fome do p�o quotidiano e despertando o apetite do “P�o da vida”, ou fazendo da �gua do po�o da samaritana o sinal sugestivo da �gua “da vida eterna”.�

Daqui que o Papa conclua este n�mero afirmando assim: �A op��o preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e priorit�ria�. ��

Para quem tivesse uma compreens�o mais ch� da op��o preferencial pelos pobres, que os �ltimos Papas t�m repetidamente sublinhado, esta afirma��o poderia parecer espiritualista ou quase alienante. Mas para quem tenha, como o Papa Francisco, uma vis�o evang�lica das coisas, alienante seria, bem pelo contr�rio, alhear-se ou esquecer que em cada ser humano persiste, mais ou menos conscientemente, a personalidade irredut�vel que, em cada resposta que se lhe d�, espera respeito e considera��o por aquilo que verdadeiramente �, como realidade consciente e livre, “espiritual” em suma. E, se n�o tivermos isto mesmo como ponto de partida e motiva��o profunda, nunca corresponderemos � necessidade do pr�ximo � medida da sua dignidade e grandeza.

De tentativas de resolu��o social meramente quantitativas, est� a hist�ria cheia e tragicamente cheia. Ao ego�smo de indiv�duos alienados da sua natureza relacional, sucederam-se estrat�gias “sociais”, algumas com generosidade inquestion�vel, mas alienadas tamb�m da densidade pessoal de cada ser humano. A uma e outras, a Doutrina Social da Igreja adianta-se com a perspetiva evang�lica da humanidade integral: que s� � de todos quando come�a por ser de cada um; e de cada um com os outros e para os outros.

Se recuarmos ao n�mero anterior da exorta��o, encontramos afirma��es ainda mais expl�citas do Papa Francisco, sobre esta considera��o espiritual dos pobres. Escreve que o nosso compromisso com eles n�o se circunscreve �s a��es e aos programas de promo��o e assist�ncia, que necessariamente inclua, mas consiste “prioritariamente” na aten��o que lhes prestamos, preocupando-nos verdadeiramente com eles e procurando efetivamente o seu bem. Para concluir, glosando uma considera��o de Jo�o Paulo II: �Quando amado, o pobre � estimado como de alto valor, e isto diferencia a aut�ntica op��o pelos pobres de qualquer ideologia, de qualquer tentativa de utilizar os pobres ao servi�o de interesses pessoais ou pol�ticos. Unicamente a partir desta proximidade real e cordial � que podemos acompanh�-los adequadamente no seu caminho de liberta��o� (Evangelii Gaudium, 199).

Concluo esta catequese com um ponto ainda, que me parece inevit�vel. Refiro-me � necessidade evangelicamente b�sica de considerarmos a pobreza, n�o como algo que atinge alguns, mas como condi��o em que nos incluamos todos.

Parto de outra frase do Papa Francisco, t�o curta como as coisas essenciais. Quando exclama: �Desejo uma Igreja pobre para os pobres� (Evangelii Gaudium, 198). Entende, com isso, que n�o h� outro modo de coincidirmos com Cristo, que �se fez pobre, para nos enriquecer com a sua pobreza� (2 Cor 8, 9), vendo aqui o pr�prio �estilo de Deus�, como ali�s escreve na sua mensagem quaresmal. E, revelando-se Deus na pobreza de Cristo, � na pobreza dos outros que Cristo nos espera, para nos evangelizar tamb�m.

S�o t�o belas como program�ticas estas afirma��es do Papa Francisco: �[Os pobres] nas suas pr�prias dores conhecem Cristo sofredor. � necess�rio que todos nos deixemos evangelizar por eles. A nova evangeliza��o � um convite a reconhecer a for�a salv�fica das suas vidas e a coloc�-los no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo neles: n�o s� a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas tamb�m a ser seus amigos, a escut�-los, a compreend�-los e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar atrav�s deles� (Evangelii Gaudium, 198).��

Um ciclo inteiro de contribui��o rec�proca, em que a riqueza divina se ganha quando se d�, para a ganharmos de quem a recebe. No m�tuo esvaziamento de si circula a riqueza divina, na terra como no c�u, e seremos cada um para todos e todos para cada um. Nem outra coisa aprenderemos nesta Semana Maior, � volta da cruz em que Deus se entregou para ser a nossa vida. Nesse mesmo sentimento, ressuscitaremos n�s tamb�m.

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+ Manuel Clemente

S� de Lisboa, 13 de abril de 2014