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Guilherme d'Oliveira Martins
Páscoa na Partida de Dois Amigos
«A noite abre as suas praças solitárias / E em todas as solidões eu te procuro»… – Sophia di-lo em «O Cristo Cigano», obra agora reeditada, sobre a qual muito se tem discutido. Há muito que tenho este pequeno livro, com uma ilustração de José Escada, como um dos meus preferidos, pela interrogação, pela busca, pela dúvida mesclada de fé. Concordo com José Tolentino Mendonça sobre o singularíssimo lugar destes poemas na obra de Sophia de Mello Breyner, em coerência com o exigente combate do que Miguel de Unamuno designou como «a agonia do cristianismo»… Estamos, no fundo, perante uma interrogação dos sinais dos tempos – nesse ano (1959) de tantos sinais contraditórios, mas de tantas intuições e profecias. Ao recordar hoje nestas linhas dois amigos de quem inesperadamente tivemos, por momentos, de nos despedir, lembrei-me desse pequeno livro, agora reeditado. D. José da Cruz Policarpo e o Padre Miguel Ponces de Carvalho estão presentes nestas linhas do Domingo da Ressurreição do Senhor. E o certo é que nestes momentos nunca há palavras suficientes ou adequadas. Quando recebemos notícias destas, assalta-nos a incredulidade e num ápice passam-nos na memória mil recordações de momentos vividos em comum. Ambos foram meus amigos, com graus diferentes de proximidade. Comecei por conhecer D. José na leitura da sua obra, com que muito aprendi. Na noite em que, a quente, a Rádio Renascença me pediu um depoimento, lembrei sobretudo essa influência intelectual. Hoje, teria gostado de recordar mais a sua simpatia humana e os muitos sinais de estima pessoal e de confiança que recebi do Cardeal de Lisboa. A verdade é que não poderia esquecer a grande influência que o seu pensamento e a sua exigência intelectual e teológica exerceram em mim. Quando me casei, o cónego João Rocha ofereceu-nos um livro de D. José («Evangelização, Anúncio de Liberdade», editado pelo saudoso amigo Manuel Bidarra). Nunca o esqueci e nunca deixei de o revisitar. Se D. António Ribeiro teve um papel fundamental na transição democrática, D. José da Cruz Policarpo prosseguiu com muita sabedoria esse legado de respeito, de abertura e de anúncio de liberdade. Sem muitas palavras, e sempre paternalmente, recebi de D. José reflexões e conselhos decisivos – com uma absoluta compreensão da independência de esferas na relação entre a Igreja e o Estado, aquando das minhas funções no governo. Com ideias claras e orientações firmes, D. José era um profundo conhecedor do Concílio Vaticano II. Foi um dos maiores especialistas desse acontecimento maior da história da Igreja universal, dando-nos a mais exaustiva interpretação da génese e desenvolvimento dos mais importantes documentos e decisões conciliares, em especial do esquema XIII, que deu lugar à Constituição Pastoral «Gaudium et Spes», além da Constituição Dogmática («Lumen Gentium»)…

Já o Padre Miguel Ponces de Carvalho (assim gostava que lhe chamássemos, mesmo depois de ser cónego) conheci-o toda a vida. No Ministério da Educação e na Presidência do Conselho de Ministros, foi um colaborador muito próximo, em especial no Secretariado Entre Culturas. Era um homem de entusiasmos e de persistente ação e empenhamento social. Mas os entusiasmos nunca puseram em causa o seu extremo rigor no cumprimento dos programas que foi chamado a cumprir, desde que o Engº Roberto Carneiro o convidou. Durante vários anos tivemos um contacto diário e fiquei a admirá-lo ainda mais pelo sentido profissional e independência, muito rigorosos, que punha em tudo o que fazia, e pela sua serena amizade. Natural de Bolama, veio muito cedo de África, frequentou o Pedro Nunes, ingressou em Medicina, militou na JUC, foi adjunto do assistente Dr. António dos Reis Rodrigues, licenciou-se em biologia, multiplicando-se em atividades na Igreja (cursilhos, escotismo). Além de um incansável formador de jovens e do seu espírito aberto, foi pioneiro no diálogo entre culturas e no combate pela inclusão social nas escolas, com reconhecimento público das organizações internacionais, merecendo especial destaque o projeto «Religare», Estrutura de Missão para o Diálogo com as Religiões, iniciativa fundamental para a concretização da liberdade religiosa e para o conhecimento do fenómeno religioso e da sua importância. Nesta Páscoa, lembro os dois amigos que partiram, mas sobretudo o seu luminoso exemplo e o compromisso determinado de fé que nos legaram.