Artigos |
Isilda Pegado
Foi… na Caminhada pela Vida

Leonor, de “Paez” (alpercatas) nos pés, saltitava e com passo ligeiro ia do passeio direito ao esquerdo da Rua da Misericórdia a cumprir a tarefa que lhe tinham destinado – distribuir os folhetos das “Vinhas de Raquel”. Com ela, as três amigas. E, tantos eram os amigos que ia encontrando. Até o “João”, lá estava…

Entre os gritos de ordem “Mais aborto não!”, “Porquê? Porquê? Se já bate um coração…” a Leonor balouçava os longos cabelos castanhos, numa alegria de quem está “entre os seus”. Às vezes passava pelo “João” que segurava um cartaz.

Abordava quem ao longo da rua parava a olhar as centenas e centenas de pessoas que iam gritando palavras a favor da Vida, da Família e que se dirigiam a São Bento. Os cartazes (muitos) tinham mensagens lapidares “O aborto mata Portugal”.

Quando chegou a São Pedro de Alcântara, ali mesmo junto ao elevador, a Leonor entregou a uma senhora de azul mais um folheto “Posso dar-lhe?” e a senhora segurou no pequeno papel, olhou e repetiu em voz alta a frase nele escrita: “ninguém esquece um filho que não nasceu”. Quando os olhos da Leonor embateram nos olhos da senhora de azul, esta já os tinha cheios de lágrimas. A Leonor ficou atrapalhada, não sabia o que dizer… Após o silêncio, a senhora de azul perguntou “posso levar mais alguns folhetos?”. E a Leonor, ainda muda, entregou-lhe vários. “Obrigado!” “Obrigado!”.

A Leonor tem 16 anos e não percebeu bem o que tinha acontecido. Virou-se para trás, viu a senhora de azul parada, a colocar os folhetos na mala, e lá seguiu a saltitar. Depois, ajudou a Teresa e o “João” a segurar um cartaz grande. Encontrou muitos amigos da escola. Mas a “senhora de azul” não lhe saiu da cabeça.

Chegados a São Bento, dançou ao som do Hino “Cada Vida é um dom maior… Anda, vale a pena viver…”. Ali no Largo de São Bento, juntou-se um grupo de amigos da Leonor (mais de 10) no rescaldo da Caminhada. Combinaram então sair à noite.

“Logo à noite vamos ao Bairro (Alto)?”, disse a Leonor, “Boa! Às 11 no Camões?” disse a Ana.

A noite estava boa e convidava a estar na rua. Sentaram-se num murete, e no chão, e ficaram à conversa. Cada um dos que esteve na Caminhada contou o que tinha vivido. Os que não foram à Caminhada, com muita curiosidade, faziam perguntas. A Leonor contou aos amigos o que se tinha passado consigo. Alguns contaram histórias dos “Referendos” ao aborto, que os pais lhes tinham contado.

Mas a história da Leonor e da senhora de azul levantou mais perguntas: “Terá feito um aborto?”, “Terá sido alguém da família?”, “Para quem serão os folhetos?”, “O que é – Vinhas de Raquel?”. A Leonor, durante a hora do jantar, já tinha ido ver e explicou aos amigos o “trauma pós-aborto”.

“Porque foi liberalizado o aborto, se para além de destruir uma criança faz tanto mal às mulheres?” Porque “os outros” diziam que não queriam as mulheres na prisão. E a Teresinha, sempre muito perspicaz: “Eu também não quero as mulheres presas, porque não quero que façam aborto”. O António disse “se no coração de cada homem e de cada mulher houver a certeza de que não se pode matar um bebé, então não precisamos da prisão”. O Rui acrescentou “O Parlamento é tão estranho, mete-me medo, não sei se vamos mudar a lei. Mas talvez seja mais fácil mudar a forma de pensar – o aborto não é solução. Nós podemos fazer isso!”.

No dia seguinte, na missa a Leonor tomou atenção à leitura do Evangelho que terminava “A pedra que os construtores rejeitaram, tornou-se Pedra Angular”. E pensou: “Talvez os meus pais tenham perdido o referendo ao aborto para que ontem eu tivesse visto as lágrimas nos olhos da “senhora de azul”. Não esqueço aqueles olhos…”