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A. Pereira Caldas
Outra vez, a fome

O Papa afirmou há dias, discursando numa conferência da FAO sobre o tema “Nutrição melhor, vida melhor”, que a luta contra a fome e a desnutrição se torna mais difícil face à “prioridade do mercado” e à “preeminência da ganância” – duas atitudes, chamemos-lhes assim, que estigmatizam o nosso tempo.

São palavras corajosas que põem o dedo na ferida. Palavras ditas por um homem que sente, aceita e assume por inteiro as suas responsabilidades como Bispo de Roma. E que nessa qualidade de sucessor de Pedro, se mostra verdadeiramente atento aos principais problemas que afligem a humanidade e, bem mais do que atento, disposto a denunciá-los e a intervir na busca de soluções possíveis, senão para os resolver, pelo menos para mitigar os seus efeitos devastadores.

A fome é, sem dúvida, um desses problemas – e talvez o mais grave. Por isso, em boa hora, Francisco chamou, de novo, para ele a atenção do mundo.

São milhões de homens, mulheres, crianças e velhos que morrem ou adoecem por falta de alimentos – e não apenas nos países mais pobres… – ante a indiferença e, o que é pior, a profunda hipocrisia dos detentores do poder, sobretudo económico, mas também político. São muitos deles que fazem da fome, escandalosamente, uma fonte ou uma base de negócios com chorudos lucros no horizonte – a tal “preeminência da ganância” denunciada pelo Papa como causa da redução dos alimentos “a uma mercadoria qualquer, sujeita à especulação, inclusive financeira”.

Bem se pode dizer por isso que a fome acaba, por reflectir, de forma dramática, a contínua delapidação do património de valores humanistas de raiz cristã em que assentou a construção da maioria das sociedades ocidentais. Veja-se, por exemplo, o fenómeno da globalização que, não obstante se ter hoje como que apoderado do mundo, nada traz de solidário e se mostra incapaz, pelo menos por enquanto, de gerar um espírito de unidade à volta de interesses e caminhos comuns fundamentais.

E a tragédia da fome continua a passar debaixo dos nossos olhos sem que quase demos por ela…

E “o faminto – diz o Papa – está aí na esquina da rua (…)”. A pedir-nos “dignidade, não esmola”.

É, pois, essencial lutar contra esta situação. Para Francisco, “pessoas e povos exigem que a justiça seja praticada.” Sabe-se que há alimentos suficientes, a nível mundial, para suprir as necessidades básicas das populações. Mas também se sabe que não chegam a quem deles necessita – e essa é uma questão que não pode colocar-se no século XXI, seja qual for o pretexto ou a razão.

Esta conferência da FAO foi importante, como outras iniciativas o foram. Mas a fome não se mata com palavras e intenções. É preciso passar à acção, unindo forças e vontades, traçando políticas e definindo metas, escolhendo prioridades que de facto o sejam.

E é, sobretudo, fundamental conseguir derrotar os interesses instalados, os egoísmos individuais e colectivos, as ambições sem limites dos mais poderosos grupos económicos.

É difícil. É, mas não há alternativa.