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Guilherme d'Oliveira Martins
Já não escravos, mas irmãos!

A mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial da Paz de 2015 reveste uma especial importância pelo tema proposto e pelo modo como é abordado. Ao intitular a mensagem «Já não escravos mas irmãos», lembra-nos a Carta de S. Paulo a Filémon, a propósito de Onésimo, que era escravo e se tornou cristão. Falar nos tempos que correm de escravatura é de uma pertinência extrema, uma vez que nos alerta para as diferentes formas de escravatura que a sociedade moderna pratica, contra todos os princípios. Não é aceitável nem legítimo pôr em causa a dignidade, a liberdade e a autonomia da pessoa humana. Não basta, por isso, afirmar a fraternidade como realidade abstrata. Importa compreender que a humanidade obriga a uma rede de relações fundamentais para a construção da família humana criada por Deus. E a Boa Nova apela a uma profunda transformação nas atitudes, nas relações e na exigência de justiça. Em vez de servos ou súbditos, os cristãos tornam-se amigos de Jesus Cristo, e portanto dignos de conhecer tudo o que Ele ouviu de Seu Pai.

Urge tomarmos consciência das múltiplas faces que assume a escravatura nos dias de hoje. Estamos diante de delitos de lesa-humanidade quando no trabalho doméstico, na agricultura, na indústria, na mineração, nos fenómenos de migração a dignidade da pessoa não é respeitada. Os direitos sociais, o salário justo, o horário de trabalho, a cobertura dos riscos sociais têm de ser respeitados. E se há trabalho escravo ele tem de ser drasticamente recusado e combatido. Releia-se a encíclica «Laborem Exercens» e todo o ensinamento da Igreja nesta matéria – recordado com especial veemência por Bento XVI na encíclica «Caritas in Veritate». Deve, assim, haver leis justas sobre as migrações, o trabalho e o emprego, as adoções, a transferência e a deslocalização de empresas, a comercialização de produtos feitos com trabalho escravo… Os direitos sociais não podem ser letra morta e têm de ganhar a maior relevância. Daí o apelo a todas as pessoas e à sociedade em geral, às organizações não-governamentais, às congregações religiosas para que estejam na linha da frente. O Papa Francisco usa, assim, de uma especial força de denúncia, já que é o próprio Evangelho que põe Cristo no nosso caminho sempre que um dos nossos irmãos for sujeito ao trabalho escravo. E os novos exemplos multiplicam-se: a menorização da mulher, o tráfico de órgãos, a produção e venda de drogas, a escravatura sexual – a que acrescem as consequências dos conflitos armados e do terrorismo. Sempre que cederemos nestes domínios, ora por ação ora por omissão, ora por desatenção ora por indiferença, é Deus que ultrajamos – uma vez que rejeitamos a humanidade no outro que está a meu lado e pede a resposta e o cuidado. E não devemos esquecer a corrupção dos que para enriquecer estão dispostos a tudo, em especial a adorar o deus dinheiro, o bezerro de ouro, em lugar de cuidar do próximo… Devemos, pois, assumir um compromisso comum para vencer a escravatura, nas formas mais diversas com que se manifesta. Daí que neste início de ano devamos invocar, como o faz o Papa: a coragem, a paciência e a perseverança.

Na Mensagem, o Pontífice recorda ainda a figura de Santa Josefina Bakhita (1869-1947), irmã canossiana, exemplo de entrega à alegria do Evangelho, apesar da escravatura e de todas as provações. Trata-se de um símbolo do amor, da globalização necessária da fraternidade e do combate generoso e amorável à escravidão e à indiferença. E temos de lembrar o episódio da morte de Abel e da pergunta de Deus: «Que fizeste de Teu Irmão?». Todos os dias estamos confrontados com este desafio. E devemos recordar todas as incompreensões de que foi vítima, por exemplo, o Padre Abel Varzim quando procurou salvaguardar as leis do amor, da atenção e do cuidado perante as samaritanas do nosso tempo, contando com indiferença e cegueira. Quem ouve o grande apelo? «Já não escravos, mas irmãos!».