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António Bagão Félix
Laudato si

A primeira encíclica do Papa Francisco “Laudato si” (“Louvado Sejas”) aprofunda a doutrina social da Igreja sobre “o cuidado da casa comum” e sobre o que chama “uma ecologia integral”, ou seja ambiental, económica, social, cultural, da vida quotidiano e de justiça intergeracional.

Logo nas primeiras palavras, o Papa alerta-nos para uma insustentável lógica de crescimento como se fôssemos “proprietários e dominadores, autorizados a saquear” os bens do planeta. E lembra o ecologista São Francisco de Assis: “Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz interior”.

Esta encíclica é uma exortação contra a indiferença. Um belo texto de desassossego. Uma reflexão de holística sensibilidade. Um grito contra o egoísmo geracional. O pleno reconhecimento da interdependência económica, social e ambiental do homem e da natureza. Um marco contra a indigência moral, que se alimenta da falta de memória corroída pela primazia do presentismo, da impunidade e da “cultura do descarte”. Francisco assinala, sobretudo, as preocupações nos domínios da biodiversidade, da água, da poluição e das mudanças climáticas, da deterioração da qualidade da vida humana e da degradação social, da desigualdade planetária e do que chama “a fraqueza das reacções perante os gemidos da irmã Terra”.

O Papa baseia toda a sua análise em dois princípios fundamentais da doutrina social da igreja: o princípio do bem comum e o princípio do destino universal dos bens. E refere: “o princípio da subordinação da propriedade privada ao destino universal dos bens e, consequentemente, o direito universal ao seu uso é uma ‘regra de ouro’ do comportamento social e o primeiro princípio de toda a ordem ético-social”.

Uma visão prospectiva, desafiante e esperançosa de uma ética não meramente antropocêntrica, desconstruindo a ideia moral de pôr o Homem à parte da natureza.

No texto é explícita a ideia de uma ética intensiva que defenda a natureza. O seu desafio último é a conservação da vida na terra. É uma ética do porvir no espaço e no tempo. Uma ética do futuro que não é uma ética para o futuro, mas para hoje. Em suma, uma visão ousadamente biocêntrica que nos possa conduzir a um ideal ético de harmonia do homem com a natureza. Uma ética que não é uma questão de ideologia, antes de confronto entre o bem e o mal, o certo e o errado.

Neste contexto integrado, Francisco chama, ainda, a atenção para o que designa “a globalização do paradigma tecnocrático homogéneo e unidimensional”.

Como já Paulo VI havia alertado na Populorum Progressio, não podemos ser indiferentes ao perigo de ”confiar todo o processo do desenvolvimento unicamente à técnica, porque assim ficaria sem orientação”. A técnica, em si mesma, é ambivalente. A tecnologia não tem rosto. É impessoal. Pode ser usada para o bem ou para o mal. Os males não estão na tecnologia, antes radicam na acção do homem. Por isso, tem que se basear numa escala de valores. Não podemos ser mais ricos em tecnologia, ao mesmo tempo que nos arriscamos a ser mais pobres em natureza. Como escreveu Bento XVI na Caritas in Veritate: “absolutizar ideologicamente o progresso técnico é um modo de separar o progresso da sua apreciação moral e, consequentemente, da nossa responsabilidade”.

Esta primeira Encíclica de Francisco prova à saciedade que o valor da Natureza não pode ser meramente instrumental ou um simples reservatório de recursos, coisificado pela apropriação e transformação do mundo natural. Daí, desde logo, a afirmação do princípio preventivo reaprendendo a naturalidade que somos, polinizando a autoridade do exemplo, investindo na “educação para a aliança entre a humanidade e o ambiente” e aprofundando a ética do cuidar, num tempo em que as leis do mercado têm prevalecido inexoravelmente sobre as leis da natureza.

Sou crente e nesse contexto acredito na Natureza reconhecendo o resultado bom e maravilhoso da intervenção criadora de Deus, como seu desígnio de amor e de verdade.

Mas há quem entenda que o cristianismo assume apenas uma visão antropocêntrica. Certamente numa exegese bíblica das primeiras palavras do livro de Génesis: “Façamos o Homem à nossa imagem para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do Céu, sobre os animais domésticos” (Gn 1, 26) e “Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a Terra” (Gn 1,28).

Mas também lá está dito que “O Senhor levou o Homem e colocou-o no jardim de Éden para o cultivar e também para o guardar. O Criador entrega ao homem, coroação de todo o processo criador, o cultivo da terra” (Gn 2,15).  Esta interpelação vem em muitas passagens bíblicas e é sublinhada na Aliança entre Deus e Noé. (Gn 9,17).

Significativamente curioso é o parentesco linguístico do hebraico adam (homem) e adamah (terra), tal como entre humano e o seu étimo (húmus) que é terra.