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Guilherme d'Oliveira Martins
Bem comum e política humanista

«O bem comum consiste no conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana» - afirmava João XXIII na encíclica «Mater et Magistra» (1961), citada em «Pacem in Terris» (1963). Estamos, antes do mais, perante a referência, na sociedade contemporânea, ao respeito pelos direitos e deveres fundamentais da pessoa humana. Nestes termos, os poderes públicos orientam-se no sentido do respeito, da harmonização, da tutela e da promoção dos direitos invioláveis das pessoas, prescrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Por isso, se uma autoridade não reconhecer os direitos ou os violar «não só perde a razão de ser, como também as suas injunções perdem a força de obrigar em consciência», como insistia S. João XXIII há cinquenta anos, num documento moderno que hoje se tornou mais atual do que em algum outro momento. A noção de serviço público não se atém apenas ao Estado e ao mercado, mas à comunidade (ou ao que designamos como sociedade civil). O Estado social tem assim de representar a sociedade e os cidadãos, devendo o serviço público corresponder sempre a uma rede de iniciativas e de cidadãos criadores e participantes. Falamos do catálogo de direitos aceites e reconhecidos pelas Nações Unidas, que a «Pacem in Terris» refere: a existência de um digno padrão de vida; o respeito pelos valores morais e culturais; o prestar culto segundo o imperativo da reta consciência; a liberdade de escolha do estado de vida; a satisfação justa de necessidades económicas; para além dos direitos de reunião, de associação, de migração e de participação política – e o Concílio Vaticano II consagrou ainda a liberdade religiosa e de consciência. E este conjunto completa-se, naturalmente, com o elenco dos deveres de cidadania (e não de servos ou súbditos): reciprocidade entre direitos e responsabilidades, colaboração mútua entre pessoas, convivência na verdade, na justiça, no amor e na liberdade, bem como salvaguarda de uma ordem moral, cujo fundamento para os cristãos é o próprio Deus. Referimo-nos, assim, a uma noção de «bem comum» que parte da dignidade da pessoa humana, articulando a singularidade individual e o sentido comunitário. Deste modo, encontramos um fundamento universal e não uma mera lógica de hierarquia formal. Não se trata de referir um modelo de bem comum ou uma noção estereotipada de democracia – mas sim de considerar que a pessoa humana é medida comum de direitos e responsabilidades. Estamos perante um elemento de justificação, de legitimidade e de reconhecimento. É justificação, uma vez que permite superar a lógica redutora da sociedade humana sujeita a modelos ou receitas. Sendo a pessoa a referência, a organização e o funcionamento da sociedade deverá encontrar um modo de respeitar, de facto, a liberdade, a igualdade, a diferença, a responsabilidade social, o pluralismo, o respeito mútuo (numa aceção positiva de tolerância), a igual consideração e o equilíbrio e a limitação de poderes (de Montesquieu). No tocante à legitimidade, estamos a falar ainda de legitimação, envolvendo a participação dos cidadãos pelo voto, pela expressão da vontade plural e pela cidadania ativa, mas igualmente a responsabilidade permanente pelo exercício dos poderes públicos. E temos de referir ainda o reconhecimento, que permite assegurar o respeito mútuo, a reciprocidade e a complementaridade sem absorção, sem exclusão e com manifestação de coesão, de confiança, de entreajuda e de diálogo cívico participante. Daí a necessidade de equilibrar a autonomia individual e a reciprocidade. Infelizmente, a autonomia individual é muitas vezes confundida com a fragmentação ou com o egoísmo, quando a autonomia pessoal apenas se afirma e reforça se permitir a articulação entre nós e os outros, entre eu e o outro, considerados como duas metades de nós mesmos. Como afirmou Jacques Maritain numa das suas conferências do período do exílio americano durante a guerra: «Dizer que o homem é uma pessoa quer dizer que, no fundo do ser, ser é mais um todo que uma parte, e mais independente que servo. Quer dizer que é um minúsculo fragmento de matéria e que é ao mesmo tempo um universo – um ser pedinte que comunica com um ser absoluto, uma carne mortal cujo valor é eterno, uma palha na qual entra o céu. É este mistério metafísico que o pensamento religioso designa quando diz que a pessoa é a imagem de Deus» («Os Princípios de Uma Política Humanista», tradução de António Alçada Baptista, Morais, 1960, p. 21).