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Guilherme d'Oliveira Martins
Discernimento e integração

«A família ensina-nos a ultrapassar as oposições e diz-nos que temos que voltar a ser um, se quisermos gerar e criar» - afirmava Jean Lacroix, no final dos anos quarenta, num livro célebre, «Força e Fraquezas da Família» (tradução de João Bénard da Costa, Moraes, 1959). «Inimigos ou estranhos, os homens, destruindo-se a si próprios, destroem necessariamente tudo com eles; a forma mais radical de auto-negação é a negação dos outros. E é entregando-se ao outro que somos cada vez mais e criamos novos seres». Para o filósofo francês, a participação integral no mistério familiar é a plena entrega de carne e espírito. Falar de família é referir, assim, a dimensão ontológica, a expressão psicológica e moral e a consideração sociológica e jurídica. Estas considerações merecem ser lembradas perante a «Relação Final do Sínodo dos Bispos sobre a Família ao Santo Padre» (24 de outubro de 2015) – que parte do «desejo fundamental de formar uma rede amorável, sólida e intergeracional da família», que se apresenta significativamente constante, «para além dos limites culturais e religiosos e das transformações sociais».

O texto merece leitura muito atenta e circunstanciada, para além dos aspetos que mais interesse suscitaram à comunicação social. A família cristã é a Igreja doméstica, o que obriga à compreensão do contexto antropológico-cultural, das contradições culturais e da necessidade de se fortalecer a família, na sua complexidade, para fazer face às fragilidades. «A família é uma escola do mais rico humanismo», como nos ensinou o Concílio Vaticano II (G.S., 52), merecendo uma especial atenção por parte dos responsáveis pelo bem comum, por se tratar da célula fundamental da sociedade e por construir elos sólidos, nos quais se baseia a convivência humana, assegurando a renovação e o futuro da sociedade. Longe de corresponder a um conjunto genérico de orientações, o documento do Sínodo apresenta desafios exigentes, que obrigam a um empenhamento de todos – no sentido de responder à solidão e à precaridade, de ligar economia e equidade, de combater a pobreza e a exclusão e de articular a responsabilidade da família no tocante ao equilíbrio ecológico, à coesão e à inclusão social. Mas «seguramente não significa que encontramos soluções exaustivas para todas as dificuldades e dúvidas que desafiam e ameaçam a família» - como lembrou o Papa Francisco. Importa, porém, referir a ênfase especial dada ao papel determinante da mulher na vida pessoal, familiar e social – considerando uma maior valorização da responsabilidade da mulher na Igreja. «A emancipação feminina apela a um repensamento dos papéis dos cônjuges, na sua reciprocidade e na responsabilidade comum na vida familiar». Neste contexto coloca-se o matrimónio na ordem da criação e da plenitude sacramental – a partir da fidelidade, da relevância da vida afetiva e da formação com vista ao dom de cada um. Importa, porém, compreender as dificuldades, as angústias, os conflitos, o sofrimento, a doença, a provação e as incertezas. Não podemos esquecer que a fecundidade é multímoda, como o amor é polifacetado – eros, filía e agapé – e que o sentido pleno é espiritual, o que nos conduz à misericórdia do coração e da revelação.

Eis por que razão o acompanhamento pastoral da família terá de ser compreensivo das situações complexas, da necessidade de regular a conflitualidade e da recusa das soluções simplificadoras e ilusórias. Daí a importância do discernimento e da integração. O Sumo Pontífice lamentou, por isso, que alguns «corações fechados» optem por «julgar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas». Sem soluções ou receitas uniformes, há um apelo à compreensão humana. Os pontos 84, 85 e 86 do documento foram aprovados por mais de dois terços dos padres presentes no Sínodo (177 em 265). A fórmula do nº 85 sobre o acompanhamento das pessoas «no caminho do discernimento segundo o ensinamento da Igreja e as orientações do bispo» obteve mais um voto do que o necessário, correspondendo a um forte apelo à responsabilidade nas relações interpessoais, já que «uma reflexão sincera pode reforçar a misericórdia de Deus, que não é negada a ninguém». Por outro lado, o número 84 afirma que os divorciados recasados têm de estar «mais integrados nas comunidades cristãs» (187 votos). Numa palavra, o Sínodo deu passos seguros no sentido da abertura, que se concretizará na inteligência, compreensão e discernimento da ação pastoral, devendo salientar-se que pela primeira vez há indicação pormenorizada de como foram votados os diversos pontos das conclusões – o que cria precedentes importantes: o da colegialidade e o da votação pública das decisões, ponto por ponto. «A experiência do Sínodo (afirmou, em suma, o Papa) fez-nos compreender melhor (…) que os verdadeiros defensores da doutrina não são os que defendem a letra, mas o espírito; não as ideias, mas o homem; não as fórmulas mas a gratuidade do amor de Deus e do seu perdão».