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Guilherme d'Oliveira Martins
«O nome de Deus é Misericórdia»

Acaba de ser publicado o livro «O Nome de Deus é Misericórdia – Uma Conversa com Andrea Tornielli» (Planeta, 2016) em que o Papa Francisco fala sobre a Misericórdia no mundo atual, a partir da ideia de imperfeição do género humano – e da exigência de um esfoço de aperfeiçoamento, que é pedido a todos. «O pecador, ao reconhecer-se como tal, de alguma forma admite que aquilo a que aderiu, ou adere, é falso. Por sua vez, o corrupto esconde aquilo que considera o seu verdadeiro tesouro, aquilo que o torna escravo, e disfarça o seu vício com a boa educação, arranjando sempre uma forma de salvar as aparências». O Sumo Pontífice põe assim o tema da corrupção nos seus termos reais – enquanto dissimulação, hipocrisia e falsidade. Se há tema fácil para os demagogos é o da corrupção. Simples é gritar ao lobo, difícil é prevenir a sua chegada… Como afirmou Emmanuel Mounier: o poder e o dinheiro atraem os corrompidos e corrompem os que atraem. Afinal, ninguém pode considerar-se fora desse risco e dessa ameaça.

Que é a Misericórdia? A compreensão e aceitação de quem cai e volta a levantar-se para prosseguir o seu caminho. E a verdade é que ninguém pode estar fora desta responsabilidade e desta natural exigência. Todos erramos, todos caímos, todos somos chamados a caminhar na dificuldade e no risco. Todos somos chamados a pôr as mãos no barro. Um dia apedrejaram Dom Bosco num lugar em que havia quem quisesse afastar dali o seu exemplo. Ao contrário do que se esperaria, foi ali mesmo que o educador construiu um dos seus campos prioritários de ação. Há muitos exemplos semelhantes, como o do Padre Cardjin, fundador da Juventude Operária Católica. Também ele decidiu lançar a semente à terra, onde era mais difícil fazê-la vingar. E que método usaram os dois? O da Misericórdia – ou seja, menos o da apresentação de certezas do que o da compreensão, do respeito e do amor. «A Igreja condena o pecado, porque tem de dizer a verdade: isto é um pecado. Mas ao mesmo tempo abraça o pecador que se reconhece como tal, aproxima-se e fala com ele sobre a misericórdia infinita de Deus. Jesus até perdoou àqueles que o puseram na cruz e o desprezaram. Temos de voltar ao Evangelho».

«Posso ler a minha vida (diz ainda o Papa Francisco) através do capítulo do livro do profeta Ezequiel. Leio aquelas páginas e digo: mas tudo isto parece escrito por mim. O profeta fala da vergonha, e a vergonha é uma graça: quando alguém sente a misericórdia de Deus, tem uma grande vergonha de si próprio, do seu pecado». No fundo, temos de nos assumir na nossa pequenez e no facto de não podermos considerar-nos satisfeitos pela nossa relação com os outros e com o mundo. Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra! E conhecemos bem o episódio do Evangelho. Daí termos de partir das pequenas coisas e das situações próximas. Temos de estar sempre a perguntar: quem é e onde está o nosso próximo. E se ele é próximo e pede a nossa presença e a nossa ajuda, a verdade é que as nossas fragilidades nunca podem ser esquecidas.

Falar da misericórdia é relacionar a humanidade com as suas responsabilidades. Um «coração compassivo» não pode limitar-se a fazer um discurso de valores abstratos e desenraizados. Não deve haver dois pesos e duas medidas: não posso estar sempre a apontar o pequeno argueiro nos olhos do outro, enquanto não vejo a trave que tapa os meus olhos. O mesmo se diga relativamente àquele que se lamenta pela falta de segurança ou pela pouca qualidade dos serviços na sua cidade e simultaneamente não participa na vida cívica nem paga os seus impostos, enganando o Estado e reduzindo os meios para a defesa do bem comum. A solidariedade, o cuidado com os outros e a caridade são caminhos que têm de ser trilhados não com mero assistencialismo, mas com políticas públicas tendentes ao desenvolvimento humano, à justiça distributiva, à coesão social, à confiança e à redução das desigualdades.

Em suma, o «dever de Misericórdia» obriga a distinguir o trigo do joio – de modo que uma «ética de responsabilidade» se torne um fator enriquecedor da realidade que nos cerca, em nome da dignidade da pessoa humana. Não podemos manter-nos indiferentes em relação a quem bate à nossa porta. Devemos estar atentos e cuidar do que nos é exigido como dever e responsabilidade – naturais contrapartidas da liberdade. Eis o que o Papa Francisco procura dizer-nos sensibilizando-nos para uma ação mais efetiva e para um compromisso sério.