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Guilherme d'Oliveira Martins
Os desafios da comunhão

A entrada de Jesus em Jerusalém é um dos episódios bíblicos que mais nos leva a pensar. Quantas vezes nos é difícil de explicar esse paradoxo sublime de Alguém que na aparente glória momentânea anuncia um sacrifício supremo. Mas a glória é, ela mesma, surpreendente, uma vez que a entrada é feita num caricatural jumento – que já de si prenuncia algo de misterioso. Não é de uma glória terrena que se trata, mas de algo muito diverso. Afinal trata-se de um reino que não é deste mundo… Que é a Paixão e a Páscoa de Ressurreição senão um dilema supremo, em que a Verdade e a Vida se afirmam na fronteira da verosimilhança? O mesmo Jesus Cristo que é aclamado será condenado como inocente e será a mesma multidão que o aclama às portas de Jerusalém que o irá condenar de modo surpreendente. Toda a glória é, no fundo, efémera, passageira e enganadora. Por muito que avancemos no conhecimento e na ciência, milhares de novos campos do saber vão ocupar os domínios da nossa ignorância – e o relato desta entrada em Jerusalém leva-nos a entender que todas as explicações têm sempre uma forte componente de dúvida e de contradição. O que é a glória? O que é a condenação? O que é a culpa? O que é a inocência? René Girard dirá que a glória fundamental está na demonstração de que a condenação de um inocente vai colocar o tema da violência e do sacrifício em termos radicalmente diferentes dos que encontramos nas religiões antigas, em que as divindades eram distantes, insondáveis, insaciáveis e caprichosas. Aqui é o próprio Filho de Deus que assume a glória em termos radicalmente diferentes – à entrada triunfal corresponde um caminho de libertação integral e suprema. Não é já o antigo «bode expiatório» que reúne os pecados, mas o inocente sem mácula que põe no centro dos acontecimentos da História a dignidade humana, a justiça e a paz.

O Padre José Tolentino Mendonça, no último número de «Didaskalia» (Volume XLV, fascículo 1, 2015) fala-nos da «radicalidade da vocação cristã e comunhão eclesial», a partir do ensino de S. Paulo e da experiência das comunidades paulinas. E parte de uma afirmação de Romano Penna: «o ex-fariseu de Tarso ajuda-nos a todos a purificar o próprio conceito de cristianismo». O texto é estimulante e leva-nos a ligar o que acabamos de referir à vivência comunitária de um cristianismo que tem como referência fundamental esse supremo sacrifício de libertação e de vida, depois de um anúncio paradoxal de glória. E o teólogo fala-nos de quatro pistas fundamentais: o desafio a acolher a metamorfose como gramática do crer; o desafio a edificar uma Igreja referida a Cristo, mais do que a si mesma; o desafio a levar a sério a natureza comunitária da Fé; e o desafio a viver em espaço de recomeço. E há uma pergunta sacramental: «O que é um cristão para Paulo: é um sujeito crente em construção, é uma escolha de viver em estado de processo, de viver ao mesmo tempo a plenitude e o inacabamento, o tesouro e o barro, a esperança e a experiência. Um cristão para Paulo nunca é um assunto arrumado, resolvido de uma vez por todas: mas é aceitar habitar uma tensão, um fazer e refazer permanentes, sabendo que a fé que temos é frágil e incompleta». Eis por que razão faz sentido ligar a invocação de Domingo de Ramos com a ideia de haver uma metamorfose, uma mudança… Afinal, quantos presenciaram a entrada em Jerusalém decerto que não se aperceberam da novidade que estavam a presenciar. No episódio da Paixão também haverá um sinal da contradição e do absurdo – uma coroa de espinhos, uma túnica e a invocação sarcástica ao rei dos judeus… Que significa este paradoxo? A necessidade de haver uma mudança radical de perspetiva e de vida. S. Paulo não conheceu o Mestre, mas tomou consciência da exigência de uma radical transformação – pessoal e comunitária. Trata-se de entender que «o acontecimento que estabelece a nova relação interpessoal entre Deus e o homem e entre si é o mistério da encarnação, morte e ressurreição de Cristo. Esta não é uma comunhão vaga, uma abstrata união espiritual sem grandes consequências, mas é participação concreta, histórica e visível à própria vida de Deus, que constitui os que são chamados, com toda a sua existência histórica e relacional, efetivamente “corpo de Cristo”: “é esta relação interpessoal dos crentes com Cristo e entre si que qualifica e distingue a comunidade cristã” (Ettore Franco)”». Assim, a entrada em Jerusalém é, em si, o apelo a um recomeço, àquilo que o Papa Francisco tem designado como um apelo a sair ao encontro do mundo, para compreender nos outros a força da dignidade do Ser.