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Pedro Vaz Patto
Não em nome de Deus

«Com muita frequência na história da religião, muitas pessoas mataram em nome de Deus da vida, combateram guerras em nome do Deus da paz, odiaram em nome do Deus do amor e praticaram a crueldade em nome do Deus da compaixão. Quando isto sucede, Deus fala, por vezes com uma voz calma e fraca, quase inaudível, sob o clamor dos que pretendem falar em seu nome. O que diz nessas ocasiões é: Não em meu nome.»

Not in God´s name é o título de um livro recentemente publicado (pela editora Hobber), de onde constam estas frases, da autoria de Jonathan Sachs. Este autor foi durante vários anos rabino-chefe do Reino Unido e dos países da Commonwealth e recebeu este ano o prémio Templeton, uma espécie de prémio Nobel «para o progresso da religião», como homenagem ao seu contributo para o entendimento entre pessoas de diferentes religiões.

A tese central desse livro pretende refutar a ideia de que as religiões, em especial as religiões monoteístas (com a sua defesa de uma verdade absoluta), são necessariamente causa de violência.

Jonathan Sachs não ignora que com frequência se procura legitimar religiosamente o ódio e a violência. Isso sucede não por causa da religião, mas por causa da natureza humana, capaz do melhor e do pior. E sucede porque a religião é a força mais poderosa para criar e manter a identidade e coesão de um grupo, a confiança entre desconhecidos. O problema surge quando a identidade e coesão de um grupo se constrói contra outro grupo. E quando uma visão dualista faz passar a fronteira entre o bem e o mal no limite que divide um grupo do outro, e não no interior de cada pessoa (o mal está sempre nos que são diferentes de nós, e nunca dentro de cada um de nós).

Os terroristas que hoje invocam o Islão para justificar a violência não o fazem tanto por serem vítimas de exclusão social, ou por viverem com intensidade a religião (que conhecem superficialmente), mas porque buscam, de um modo perverso, uma identidade, um sentido de pertença e uma aspiração de entrega pessoal que as sociedades materialistas e individualistas de hoje não satisfazem.

Mas esse papel de cimento de identidade contra outros também foi desempenhado por ideologias que imperaram no século XX e que pretendiam substituir a religião. E a violência chegou ainda mais longe: Hitler, Estaline, Mao, Pol Pot.

O desafio não é, então, o de suprimir ou viver com menos intensidade a religião, mas o de a viver com mais autenticidade. Porque nas religiões monoteístas que se reconhecem na fé de Abraão encontra-se o antídoto radical ao ódio e à violência.

As religiões politeístas serviam de justificação do poder hierárquico político e social (o faraó, o imperador ou o rei eram, de vários modos, equiparados a Deus). A novidade da Bíblia hebraica (o Antigo Testamento, para os cristãos) está na valorização de qualquer pessoa como «imagem e semelhança de Deus», de um Deus que intervém na história para libertar os que não têm poder, em defesa dos mais pobres, fracos e vulneráveis. Os profetas criticam o poder e promovem uma ordem social de justiça, amor e paz. O caminho da violência em nome da religião é o da vontade do poder, o de Caim, não o de Deus, que a essa violência responde: «A voz do sangue do teu irmão clama da terra até mim» (Gn 4, 10).

As religiões podem satisfazer aquelas aspirações de identidade, pertença e sentido que não são satisfeitas pelo materialismo e o individualismo contemporâneos. Podem fazê-lo superando a visão dualista (que divide o mundo em bons e maus), com a consciência de que a fronteira entre o bem e o mal passa pelo coração de cada um de nós. Há estudos que revelam como a religião incrementa o “capital social”, o serviço e o amor aos outros e à comunidade. E também a capacidade de renúncia, que é condição indispensável para superar a grave crise demográfica de hoje.

A resposta à violência em nome de Deus é, assim, um desafio de âmbito teológico e vivencial, que se coloca a judeus, cristãos e muçulmanos e que passa pela educação das jovens gerações. Um desafio da maior atualidade, que torna particularmente oportuno este livro do rabino Jonathan Sachs.