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António Bagão Félix
Muros e pontes no caminho de pedras

Todos os dias há pedras no caminho. Das pessoas. Das comunidades. Dos países. Do Mundo. A globalização económica – com aspectos meritórios – não as limitou tanto quanto seria necessário. Como disse João Paulo II, será preciso associá-la à “globalização da solidariedade”.

E o que se tem feito, no Mundo, com as pedras? Mais pontes ou mais muros? Parte da resposta deu-a Bento XVI na Encíclica “Caritas in Veritate”: “a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos (mais) vizinhos, mas não nos faz (mais) irmãos”.

São necessárias pontes, muitas pontes. Para um desenvolvimento pleno, autêntico, libertador, pluridimensional. Um desenvolvimento associado à ética e à responsabilidade. Aos direitos e aos deveres. À justiça distributiva e não apenas à justiça comutativa. À afirmação do princípio da subsidiariedade para “governar a globalização”. À necessidade de suplantar a hegemonia da ideologia tecnocrática. Ao “ser mais e melhor” e não apenas “ao incremento do ter”. À sustentabilidade social, demográfica e geracional que erradique a primazia da lógica estrita do curto-prazo.

Já o Papa Francisco denunciou a “cultura do descarte”, e a nova idolatria do dinheiro, “que governa em vez de servir”. Disse, ainda, que a crise que atravessamos tem na sua génese uma explicação antropológica profunda: a da negação da primazia do ser humano e a insuficiente (e deficiente) tutela do bem comum. “Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras”, escreveu numa sua Exortação Apostólica.

O “muro da vergonha” (Berlim) caiu em 1989, mas não desapareceu a vergonha dos muros. Foi, sem dúvida, um momento de genuína expectativa, uma enorme oportunidade para construir pontes. Edificaram-se algumas, abriram-se novas oportunidades, mas foram mais os muros que mais se ergueram ou se fortaleceram. Há ainda muros (só falando dos físicos) entre as duas Coreias, entre partes da Índia e do Paquistão e do Bangladesh, num terço da fronteira entre os EUA e o México, entre a Geórgia e a Ossétia do Sul, Marrocos e Saara Ocidental, Ceuta e Melilla, Israel, Cisjordânia e Gaza, Nicósia, entre outros. A situação agravou-se agora com políticas simplistas e egoístas de rejeição de refugiados, deslocados e desesperados. Levantaram-se novas barreiras entre a Turquia e a Bulgária, Hungria e Sérvia e anunciam-se novos muros que, estranhamente, colhem muitos apoiantes.

A tudo isto, a comunidade internacional tem respondido com tibieza, divisão e incapacidade. Na União Europeia, assistimos a puros jogos de palavras, ditas e reditas, acordos de transacção de pessoas por cheques, novos egoísmos que se julgariam fora de uma chamada União, o reacender de nacionalismos que se olhavam apenas como coisas da história.

É neste complexo contexto que o nosso concidadão António Guterres vai desempenhar as funções de Secretário-Geral das Nações Unidas. Com humildade e gratidão, como ele tão bem resumiu. Cidadão do Mundo e português, Guterres é o homem certo para este tempo de globalização parcelada, insensível, fragmentária, tolhida pelo medo, e com incipiente densidade moral. Tem a experiência, o radical sentido humanista do serviço ao outro, a sageza e a genuinidade ética na concertação de esforços para a verdadeira paz e desenvolvimento.

A sua cristalina (este é o adjectivo certo face às manobras de última hora) eleição é para mim, como português, um enorme motivo de orgulho. E, enquanto católico como ele, uma jubilosa esperança.